Abuso dos princípios e “teoria da katchanga”

Interessante (e preocupante) a afirmação do Min. Eros Grau, acerca do abuso dos princípios constitucionais (no site Ultima Instância):

De acordo com o ministro Eros Grau, quando ocorre o abuso dos princípios, e mais grave ainda, quando nesse abuso as preferências pessoais predominam, “se faz a chamada ponderação dos princípios e acabamos decidindo no plano do arbítrio”. Com isso, segundo ele, “a insegurança jurídica se instala, na medida em que o STF deixa de ser controlador da constitucionalidade e passa a exercer o comando da proporcionalidade e razoabilidade das leis”.

[…]

Contextualizando a temática, Eros Grau admitiu que no Supremo, muitas vezes, eles estão “atravessando a praça”, na medida em que não existe um critério que oriente a maneira como os princípios e valores devem ser ponderados. “É a questão da tirania e isso me parece extremamente grave”, declarou. Além disso, no entendimento do ministro, a segurança jurídica estará sendo “despedaçada” se houver uma formulação arbitrária sobre juízos de valor quando se ponderam princípios.

A preocupação do Ministro é procedente. O reconhecimento de que o abuso dos princípios pode levar ao arbítrio me faz recordar a “teoria da katchanga”, explicada por George Marmelstein Lima em seu site. Abaixo, alguns trechos:

Como é do costume brasileiro, a teoria dos princípios de Alexy foi, em grande parte, distorcida quando chegou por aqui.

Para compreender o que quero dizer, vou explicar, bem sinteticamente, os pontos principais da teoria de Alexy.

Alexy parte de algumas premissas básicas e necessariamente interligadas:

(a) em primeiro lugar, a idéia de que os direitos fundamentais possuem, em grande medida, a estrutura de princípios, sendo, portanto, mandamentos de otimização que devem ser efetivados ao máximo, dentro das possibilidades fáticas e jurídicas que surjam concretamente;

(b) em segundo lugar, o reconhecimento de que, em um sistema comprometido com os valores contitucionais, é freqüente a ocorrência de colisões entre os princípios que, invariavelmente, acarretará restrições recíprocas entre essas normas (daí a relativização dos direitos fundamentais);

(c) em terceiro lugar, a conclusão de que, para solucionar o problema das colisões de princípios, a ponderação ou sopesamento (ou ainda proporcionalidade em sentido estrito) é uma técnica indispensável;

(d) por fim, mas não menos importante, que o sopesamento deve ser bem fundamentado, calcado em uma sólida e objetiva argumentação jurídica, para não ser arbitrário e irracional.

Os itens a, b e c já estão bem consolidados na mentalidade forense brasileira. Hoje, já existem diversas decisões do Supremo Tribunal Federal aceitando a tese de relativização dos direitos fundamentais, com base na percepção de que as normas constitucionais costumam limitar-se entre si, já que protegem valores potencialmente colidentes. Do mesmo modo, há menções expressas à técnica da ponderação, demonstrando que as idéias básicas de Alexy já fazem parte do discurso judicial.

O problema todo é que não se costuma enfatizar adequadamente o último item, a saber, a necessidade de argumentar objetivamente e de decidir com transparência. Esse ponto é bastante negligenciado pela prática constitucional brasileira. Costuma-se gastar muita tinta e papel para justificar a existência da colisão de direitos fundamentais e a sua conseqüente relativização, mas, na hora do pega pra capar, esquece-se de fundamentar consistentemente a escolha.

Por isso, todas as críticas que geralmente são feitas à técnica da ponderação – por ser irracional, pouco transparente, arbitrária, subjetiva, antidemocrática, imprevisível, insegura e por aí vai – são, em grande medida, procedentes diante da realidade brasileira. Entre nós, vigora a teoria da Katchanga, já que ninguém sabe ao certo quais são as regras do jogo. Quem dá as cartas é quem define quem vai ganhar, sem precisar explicar os motivos.

[…].

No fundo, a idéia de sopesamento/balanceamento/ponderação/proporcionalidade não está sendo utilizada para reforçar a carga argumentativa da decisão, mas justamente para desobrigar o julgador de fundamentar. É como se a simples invocação do princípio da proporcionalidade fosse suficiente para tomar qualquer decisão que seja. O princípio da proporcionalidade é a katchanga real!

Não pretendo, com as críticas acima, atacar a teoria dos princípios em si, mas sim o uso distorcido que se faz dela aqui no Brasil. Como bem apontou o Daniel Sarmento: “muitos juízes, deslumbrados diante dos princípios e da possibilidade de, através deles, buscarem a justiça – ou o que entendem por justiça -, passaram a negligenciar do seu dever de fundamentar racionalmente os seus julgamentos. Esta ‘euforia’ com os princípios abriu um espaço muito maior para o decisionismo judicial. Um decisionismo travestido sob as vestes do politicamente correto, orgulhoso com os seus jargões grandiloqüentes e com a sua retórica inflamada, mas sempre um decisionismo. Os princípios constitucionais, neste quadro, converteram-se em verdadeiras ‘varinhas de condão’: com eles, o julgador de plantão consegue fazer quase tudo o que quiser” (SARMENTO, Daniel. Livres e Iguais: Estudos de Direito Constitucional. São Paulo: Lúmen Juris, 2006, p. 200).

Sarmento tem razão. Esse oba-oba constitucional existe mesmo. E não é só entre os juízes de primeiro grau, mas em todas as instâncias, inclusive no Supremo Tribunal Federal.

[…].

Abaixo a katchangada!

Corretíssimo.  E concluo este post destacando um outro trecho do texto de George Marmelstein Lima:

O que deve ser feito é tentar melhorar a argumentação jurídica, buscando dar mais racionalidade ao processo de justificação do julgamento, através de uma fundamentação mais consistente, baseada, sobretudo, em dados empíricos e objetivos que reforcem o acerto da decisão tomada.

ATUALIZAÇÃO:
A respeito, confira também o post Fundamentação da decisão judicial no NCPC.

* * *

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2 comentários em “Abuso dos princípios e “teoria da katchanga”

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  1. Ótima reflexão essa do texto.

    E a tal “katchangada” parece ser, também, resultado do discurso que estigmatiza o estudo das construções dogmáticas.

    É a tal onda de “constitucionalização” do direito, que tem resultado, perceptivelmente, em um abandono dos estudos no plano da dogmática e dos institutos, em prol de argumentos genéricos e “frouxos” no campo dos princípios.

    Menos dogmática = Menos racionalidade argumentativa

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