Em sistemas jurídicos como o brasileiro, em que as normas constitucionais e federais são aplicadas por tribunais estaduais e tribunais regionais federais autônomos entre si, justifica-se a existência de recursos com a finalidade de proporcionar a unidade de inteligência acerca do Direito nacional.
É o que sucede com os recursos extraordinário e especial.
A aplicação do direito pelos órgãos judicantes seria precária se não se buscasse preservar a unidade de sua compreensão, evitando interpretações divergentes do direito positivo. Busca-se, por isso, na medida do possível, obter a unidade de inteligência da norma, em função do entendimento unificador e estabilizador que lhe devem dar os tribunais superiores.
Através dos recursos especial e extraordinário busca-se a uniformização da interpretação da lei federal ou a guarda da Constituição Federal, evitando-se a persistência de decisões que adotem orientações diferentes acerca de uma mesma regra ou princípio jurídico de direito constitucional ou de direito federal infraconstitucional.
Nota-se, pois, que os recursos extraordinário e especial ligam-se à idéia de federalismo, forma adotada pelo Estado Brasileiro (arts. 1.o e 18 da CF/1988).
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A EC 45/2004 criou, como tenho observado insistentemente, situação paradoxal (escrevi sobre o tema também neste post): O STF não mais examina, através de recurso extraordinário, questões constitucionais que digam respeito apenas às partes – isto é, que não ostentem repercussão geral. O mesmo, ao menos até o momento, não deve ocorrer com o recurso especial, já que, neste caso, é irrelevante saber se a questão interessa apenas para as partes, ou se ultrapassam “os interesses subjetivos da causa” (art. 543-A, § 1.o do CPC).
Assim, decisões proferidas pelos tribunais regionais e dos estados, embora contrárias à Constituição Federal, podem passar em julgado, ainda que manifestamente contrárias à Constituição Federal. O mesmo não ocorre, necessariamente, se estas mesmas decisões forem contrárias à lei federal – já que, neste caso, ao menos em tese e enquanto não é aprovada nova emenda constitucional limitadora do acesso aos tribunais superiores, será possível pedir a correção do erro pelo STJ, através de recurso especial.
Por isso, preocupa-nos a tendência, manifestada na denominada “PEC dos recursos”, de se limitar ainda mais o acesso aos Tribunais Superiores (cf. também o que escrevemos neste post). Ora, é função do STF e do STJ uniformizar a inteligência da norma constitucional e federal-infraconstitucional, no direito brasileiro. Ao se estreitar, excessivamente, o acesso aos tribunais superiores, corre-se o grande risco de se aumentar ainda mais a divergência jurisprudencial existente nos tribunais nacionais acerca dos mais variados temas de direito constitucional e federal – e, como se sabe, a jurisprudência brasileira é profícua na criação de divergências e no desrespeito aos precedentes, algo que o projeto do novo CPC quer evitar (escrevi a respeito neste post).
Não seria adequado, então, indagar por que, afinal, os tribunais estaduais e regionais federais não respeitam a jurisprudência dos tribunais superiores? Ou, ainda, por que os tribunais superiores oscilam tanto em sua jurisprudência?
Estreitar o cabimento dos recursos extraordinário e especial pode, eventualmente, reduzir a quantidade de processos em trâmite nos tribunais superiores. Mas penso, sinceramente, que o número de processos nos tribunais não pode ser o único motivo para a reforma do sistema recursal. O sistema recursal deve ser reformado para ser aprimorado, melhorado, para que se possa de fato dizer que a prestação jurisdicional entregue pelo serviço público jurisdicional foi algo de qualidade. Limitar o cabimento dos recursos extraordinário e especial – e, consequentemente, o âmbito de atuação dos tribunais superiores – poderá significar torná-los recursos de pouca serventia, no direito brasileiro. Assim como as pessoas e as coisas, também as potestades existem para servir. Deve-se, então, discutir em primeiríssimo lugar para que servem o STF e STJ – e não vale responder que servem a si mesmos.
Por estas e outras razões, espero que a reforma constitucional que se anuncia preocupe-se em “pensar pensando” e não em “pensar calculando”. Como se tem afirmado, o mundo, hoje, sofre com a carência de pensamentos, e não com a carência de recursos. Como explica Stefano Zamagni,
o pensamento deve ser pensante, não calculante. Porque o pensamento calculante, aquele que nos ajuda a resolver os problemas, é pensado pelos outros. O pensamento pensante lhe dá a direção, o saber se deve ir por aqui ou por lá.
Para se administrar a justiça, é necessário pensar pensando, e não apenas pensar calculando.
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Reblogged this on Alexandre Melo Franco Bahia.
Limitar o Direito de qualquer forma é algo sempre perigoso. O processo fica cada vez mais institucionalizado e, consequentemente, cada vez menos constitucional.
No Brasil a Constituição não é debatida, não é utilizada. Vide antigos debates como a Coisa Julgada e o dito Processo Constitucional, o que na verdade, deveria ocorrer em toda as faces do Direito.