“O impeachment de Lugo foi legal, mas não foi democrático”, segundo Peter Lambert

Em entrevista concedida à Revista Época, o especialista em constituição paraguaia e cientista político Peter Lambert falou sobre o impeachment do ex-presidente paraguaio Fernando Lugo.

Eis a entrevista:

A destituição do então presidente paraguaio Fernando Lugo no dia 22 foi visto na comunidade internacional como um golpe travestido de legalidade. Isso porque, apesar de se pautar em princípios constitucionais, a articulação dos senadores, integrantes de uma esmagadora maioria oriunda dos partidos Colorado e Liberal – contra Lugo –, foi relâmpago. Em 30 horas realizaram o julgamento político do ex-bispo, sustentando o argumento de “má gestão” como motivo. Foram 39 votos a favor do impeachment quatro contrários e uma abstenção.

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A gota d’água para o Congresso local e fato considerado como justificativa mais que suficiente para iniciar a transição foi um conflito agrário com policiais, que culminou na morte de 17 pessoas. O especialista em constituição paraguaia e cientista político Peter Lambert, professor de uma das mais renomadas instituições britânicas, a Universidade Bath, falou a ÉPOCA sobre a polêmica, que refletiu num desgaste internacional do Paraguai de Federico Franco, novo chefe de Estado local, especialmente com vizinhos latino-americanos. Peter diz que não é de hoje que os inimigos políticos de Lugo ensejavam sua deposição, graças a desacordos ideológicos. Segundo o especialista, houve um claro abuso dos poderes legislativos, por explorarem a Constituição do Paraguai, que previa conceder as escassas duas horas de defesa para Lugo, cujo mandato se desgastava especialmente após envolvimento em escândalos de paternidade e a perda de aprovação das massas.

ÉPOCA – O impeachment do presidente Fernando Lugo poderia ser caracterizado como um processo que “não respeitou o devido processo legal”, como a Unasul disse logo após a derrubada do ex-presidente?
Peter Lambert – O impeachment foi legal de acordo com a Constituição paraguaia. No entanto, isso não significa que ele tenha sido ético ou democrático. Os poderes conferidos ao Congresso para impedir o mandato de um presidente foram planejados para serem aplicados em caso de graves abusos de poderes de um mandatário (como abuso de direitos humanos, corrupção, roubo e etc.). E não para os critérios que foram utilizados neste caso. Na verdade, este foi um movimento politicamente motivado pelos Colorados e pelos Liberais, que atuaram com vistas a seus próprios interesses, e não aos interesses do país, e abusando da Constituição e dos poderes do Congresso para fazê-lo.

Por outro lado, a razão para o impeachment foi notavelmente fraco – mas foi um golpe institucional no sentido de que ele violou o espírito democrático e as intenções da Constituição, mais propriamente isso do que ter violado os preceitos da lei paraguaia.

Ex-presidente do Paraguai, Fernando Lugo, diz que tem intenção de voltar ao poder (Foto: EFE)

ÉPOCA – A Constituição do Paraguai poderia ser considerada menos democrática do que a de os outros países sul-americanos, por permitir um julgamento muito curto que derrubou o então chefe desse país sem lhe dar a oportunidade de ampla defesa? O julgamento teve apenas 30 horas, e os senadores concederam apenas duas para os advogados de Lugo defendê-lo.
Lambert – Não, não é menos democrática por isso. A Constituição de 1992 reflete um momento em que o Paraguai tinha acabado de emergir de 35 anos de ditadura sob as mãos de Alfredo Stroessner. Em reação a isso, a nova Constituição deu ao Congresso amplos poderes para limitar e controlar os poderes do executivo, a fim de evitar o surgimento de um líder caudilho ou autoritário novamente. A Constituição permite o processo de impeachment para o fraco desempenho de deveres e responsabilidades, mas não menciona a que velocidade isso deve ocorrer. O processo contra Lugo foi injusto e antidemocrático quanto a suas intenções, racional e rápido, mas não viola a Constituição, embora o Senado tenha simplesmente abusado dela. Por isso, o impeachment de Lugo foi, com efeito, um golpe de Estado pelo Congresso, que usou a Constituição para apoiar uma ação injustificável, atrelado a uma imprecisão da própria Constituição para impulsionar o processo por meio de um ritmo injustificável. Novamente, embora o processo tenha sido indefensável quanto à sua velocidade, e pelo fato de Lugo não ter tido um tempo para preparar uma boa defesa, a ação não foi inconstitucional.

ÉPOCA – Algumas entidades, como a Organização dos Estados Americanos (OEA), após Unasul e Mercosul se posicionarem na mesma linha, têm dúvidas sobre a constitucionalidade do mandato do novo presidente, Federico Franco. A OEA acredita que o diálogo entre os países americanos pode se tornar difícil depois do julgamento. José Miguel Insulza, secretário da OEA, disse que integrantes da Unasul encontraram barreiras quando visitaram o Paraguai na última sexta-feira (22), embora tenham notado que o país não atravessava uma crise depois do impeachment de Lugo. Haverá um isolamento político do Paraguai por parte dessas entidades a partir de agora?
Lambert – Primeiramente, a reação dos vizinhos latino-americanos tem sido muito positiva nesse sentido. De fato, sem uma reação tão forte, este golpe poderia muito bem ter passado despercebido, ou simplesmente ser aceito (como ocorreu por parte dos Estados Unidos). A reação de membros da Unasul, da Aliança Bolivariana para as Américas (Alba) e do Mercosul iluminou a atenção internacional sobre a natureza antidemocrática do processo de impeachment e mostrou que tais “golpes” não serão simplesmente ignorados. No entanto, duvido que isso produzirá muito mais do que um impasse. Realmente, a posição firme dos membros do Mercosul foi manipulada no Paraguai para reforçar o nacionalismo que era uma parte tão importante do regime de Stroessner (Alfredo Stroessner Matiauda, presidente militar paraguaio entre 1954 e 1989, que alcançou o posto após derrubar Federico Chávez do Executivo num golpe e foi conhecido por carregar um mandato longo na América Latina, de 35 anos, perdendo apenas para Fidel Castro). Esta narrativa retrata o Paraguai mais uma vez como uma vítima de agressão externa, uma vítima de seus vizinhos, num discurso que se refere constantemente à Guerra da Tríplice Aliança. Também não está claro ainda quais medidas a comunidade internacional adotará. No caso do Brasil, a presidente Dilma Rousseff falou em sanções, mas não estou convencido de que o Itamaraty seja particularmente contrário ao golpe; Lugo forçou concessões significativas do Brasil sobre Itaipu, enquanto Federico Franco era muito mais conciliador em relação ao Itamaraty em termos de Itaipu, e também quanto às terras disputadas com os brasiguaios, quando ele era vice-presidente. Eu não acredito que Dilma tenha total poder de decisão quanto a sanções. E acho que será difícil dialogar com Franco, já que o Paraguai, mais uma vez, encontra-se muito isolado na comunidade latino-americana. Isto é muito decepcionante dado o progresso no estabelecimento do Paraguai como um membro importante da comunidade latino-americana ao longo dos últimos anos.

Federico Franco, no palácio presidencial (Foto: Jorge Saenz/AP)

ÉPOCA – A consequência desse isolamento pode afetar a economia paraguaia, que é o menor PIB do Mercosul? Em que setores ou áreas de produção traria mais dificuldades para eles?
Lambert – Isto depende da natureza das sanções. Se o Paraguai for temporariamente expulso do Mercosul, isso traria efeitos significativos sobre o comércio. No entanto, grande parte da economia do Paraguai é informal e muito dependente de Itaipu (que nesta possibilidade não seria afetada – A binacional tem duplicidade de diretores e qualquer mudança imposta por Brasil ou Paraguai teria de ser aprovada pelo congresso dos dois países para ter efeito).

ÉPOCA – E como eles poderiam evitar esse efeito complicador nesse momento em que as nações estão acaloradas pelos acontecimentos?
Lambert –
Hoje eu duvido que sanções completas serão aplicadas sobre o Paraguai. Porque o novo governo argumentará que não violou a Constituição, e neste caso estão certos.

ÉPOCA – É possível crer que os outros países americanos mantenham um bloqueio ao Paraguai até que eles recoloquem Lugo na presidência novamente? Ou essa possibilidade não tem mais chance de acontecer depois do impeachment, com a Justiça dando aval à decisão do Congresso?
Lambert –
Eu pessoalmente acredito que o Lugo não retornará ao poder. Ele não tem uma base partidária para apoiá-lo. Sua popularidade já havia caído devido a erros pessoais e políticos (Lugo foi constantemente desgastado por denúncias de paternidade por diferentes mulheres). E também porque o Colorado e os partidos liberais ainda controlam a grande maioria dos votos no congresso, e não há nenhuma onda de apoio a ele surgindo.

ÉPOCA – O governo interino no Paraguai havia informado, antes da intensificação dos argumentos críticos de seus vizinhos, que a população não poderia sofrer por causa de sanções. Os senadores não perceberam que isso poderia acontecer quando eles começaram o rápido julgamento político? Ou eles pensaram que seriam apoiados em destituir Lugo, já que o mandato dele não está deixando contentes seus aliados e parte da sociedade.
Lambert –
Eu não acho que os senadores e deputados paraguaios consideraram ou se preocuparam com alguma coisa quanto à população. Políticos paraguaios são ainda muito tribais (com alianças políticas baseadas no clientelismo e na lealdade familiar (mais uma religião civil do que uma escolha ideológica). E os partidos políticos são caracterizados por uma busca por poder e acesso aos recursos do Estado ao invés do bem-estar da nação. Além disso, eu imagino que eles não pensaram que a reação latino-americana seria tão forte. O congresso certamente esperava que todo mundo seguiria a linha dos Estados Unidos.

ÉPOCA – Você acredita que a sociedade aceita a troca de presidentes por meio de um impeachment ou poderia se mobilizar por meio de movimentos partidários para espalhar uma onda de protestos no Paraguai? Lugo teve respaldo de camponeses durante seu julgamento, embora tenha sido um confronto entre a polícia e agricultores a gota d’água para o Senado iniciar sua derrubada.
Lambert –
Não, Lugo tem um apoio muito tímido das massas, a sociedade civil é muito fraca, e há quase nenhuma possibilidade de um levante popular contra dois tradicionais, e poderosos, partidos que controlam a maioria dos votos, por meio daquele clientelismo e poder econômico.

ÉPOCA – O que o impeachment de Lugo mostra sobre a democracia do Paraguai?
Lambert – Os esforços de Lugo para introduzir reformas sociais que já deveriam ter sido introduzidas havia muito tempo e eram desesperadamente necessárias ameaçaram as elites e paramentaram os interesses em dois tradicionais partidos de direita (Liberal e Colorado). Como resultado, seus esforços para fazer as reformas agrária, tributária, de bem-estar e política têm sido consistentemente bloqueados desde 2008 por uma oposição que tem usado métodos legais, mas não democráticos, para minar seu governo em todas as oportunidades possíveis (desesperadamente o barrou nas reformas sociais necessárias, houve muitas tentativas e chamadas para a criação de impeachment, outras inúmeras “crises”, e tentativas de distorcer o orçamento para levar o Tesouro à falência, etc.). A oposição, Liberal e Colorado, não agiu como uma oposição democrática ao longo dos últimos quatro anos e, portanto, o “golpe” quase atual pode ser visto nas palavras de Gabriel Garcia Marquez como a Crônica de uma morte anunciada: Lugo era sempre refém de interesses antidemocráticos no Paraguai.

O processo também reflete a fraqueza da transição democrática, que tem sido controlada, limitada e dominada pelo partido Colorado desde 1989. Apesar dos progressos alcançados na criação de procedimentos e instituições democráticas, isso não significou que o progresso tem sido feito nas áreas da social-democracia, a exemplo da pobreza, cidadania e desigualdade, ou a respeito do Estado de Direito. Estas questões são vitais em um país subdesenvolvido, e grosseiramente desigual em um país como o Paraguai, que tem uma história de regime autoritário. Assim, a democracia continua a ser frágil e fraca no Paraguai, enquanto as tão esperadas e necessárias reformas políticas e sociais continuam uma esperança mais do que uma realidade.

fonte: Época, por Vinicius Gorczeski

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