O fatiamento do processo e a unidade do julgamento
Em artigo publicado no jornal Valor Econômico, o professor da USP, Alamiro Velludo Salvador Netto, trata do fatiamento do processo do “Mensalão”.
Eis o artigo:
Nos últimos dias uma questão processual gerou algumas controvérsias no julgamento da Ação Penal nº 470 pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Trata-se do denominado fatiamento do processo, inicialmente postulado pelo ministro relator e que, após algumas divergências, parece ter sido definitivamente aceito pela Corte como metodologia para o complexo julgamento. De fato, inegável é que o julgamento da mencionada ação penal é ontologicamente complicado, ou seja, existem diversas condutas imputadas a uma série de réus, algumas delas conexas, outras não. Portanto, para além da inerente complicação jurídica, existe também uma dificuldade material, quantitativa. Adiciona-se a isso que, ao contrário dos processos criminais rotineiros, o tribunal julga de forma colegiada, o que significa prestigiar a busca de alguma forma de decidir que possa – o melhor possível – refletir a maioria dos entendimentos dos 11 ministros acerca de todos os variados fatos e acusados.
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De acordo com o encaminhamento do julgamento pelo STF, existe, na verdade, um duplo fatiamento, com implicações e naturezas distintas. Um deles diz respeito a decidir, em momentos estanques, pela condenação ou absolvição dos réus para, posteriormente, debruçar-se, somente no caso dos condenados, sobre a fixação da pena concretamente imposta. Essa cisão, embora rompa com aquilo que tradicionalmente se verifica em julgamentos colegiados (já que o relator costuma, já em seu voto, cuidar juntamente de ambos os aspectos), não é novidade. Casos anteriores no próprio STF assim foram decididos, separando o juízo de culpabilidade do juízo de determinação da pena. Tal formatação cindida, por si só, não acarreta prejuízos para acusação ou defesa, cuidando apenas de um mecanismo procedimental de decidir. A propósito, a doutrina estrangeira tem gradativamente sugerido um momento específico para a determinação da pena, haja vista que a maior atenção à quantificação punitiva pode ser mais salutar para a cuidadosa aferição da punição a ser imposta à luz das finalidades da sanção criminal.
Outro fatiamento diverso, e certamente um pouco mais polêmico, é o que diz respeito à divisão das imputações. Melhor explicando: uma primeira possibilidade seria o relator apresentar todo o seu voto, englobando integralmente os fatos e acusados, sendo sucedido pelo revisor e, depois, pelos ministros restantes na ordem inversa de antiguidade. Nesse caso, cada ministro se pronunciaria, em regra, apenas uma vez, eis que nessa única manifestação exporia seu entendimento acerca da condenação ou absolvição dos réus nos termos de toda a denúncia. A outra opção, esta sim a adotada, significa o relator apresentar seu voto em partes, adotando um critério para tais cisões. No caso concreto, a dinâmica foi pautada pelas divisões sistemáticas da própria peça acusatória. Assim, e com esse método, cada um dos ministros precisará se manifestar na exata medida das subdivisões. O julgamento caminha aqui numa dinâmica progressiva, decidindo-se passo a passo cada um dos tópicos imputados pelo Ministério Público. O argumento utilizado para sustentar esse expediente – e com o qual aqui não se discorda – foi a maior facilidade de compreensão e aprofundamento em cada um dos itens e subitens da acusação. A se adotar uma leitura de voto integral, e após longas jornadas de leitura, poder-se-ia perder intelectualmente no emaranhado factual, deixando-se, por um lapso, de abordar com a devida cautela detalhes e minúcias do caso.
Evidentemente que essa sistemática de votação não está imune a alguns problemas, a começar pela divergência interpretativa a respeito do procedimento estabelecido pelo regimento interno do STF. Ademais, também é sabido que julgamentos extensos podem conduzir à mudança dos julgadores, os quais se aposentariam no trâmite decisório. Deve-se notar, entretanto, que tais problemas derivam da própria atipicidade do julgamento com o qual se depara a sociedade brasileira. Isto é, independentemente do método adotado, cuida-se de um processo gigantesco, intrincado, posto sob os cuidados de 11 juristas. O que parece corretamente nortear as atenções do tribunal é exatamente ouvir com atenção as partes, avaliar a prova e proferir um julgamento juridicamente justo. Ao fim, o que deve permanecer, isto sim, é um acórdão fruto de um julgamento colegiado, demonstrativo das convergências e divergências, porém, acima de tudo, uno e indivisível em seu dispositivo. Isto é, uma unidade julgada na pluralidade das ideias do julgamento.
Alamiro Velludo Salvador Netto é professor doutor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP)
fonte: Valor Econômico, por Almiro Velludo Salvador Netto.
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