Direito Constitucional, Patrimônio Cultural: artigo de Paulo Ferreira da Cunha
Em artigo publicado em Selected Works , o doutor Paulo Ferreira da Cunha, da Universidade do Porto, propõe o desafio teórico de se pensar o Direito Constitucional não só como como ciência de cultura (Peter Haeberle), mas ainda como patrimônio cultural, a defender também pela Cidadania.
Eis o artigo:
Não só o Direito é cultura, como é ainda, como alguém lhe chamou, a “medicina da cultura”. Para além das minudências que tanto enfadam os leigos, da coação, da burocracia, o Direito é hoje o grande guardião de um modelo civilizacional de cultura, de dignidade da Pessoa, que (ir)racionalidades não jurídicas procuram desterrar. E a sede dessa dimensão cultural do jurídico é, no plano prático, o Direito Constitucional.
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Apesar de alguns políticos o denegrirem e de alguns juristas dele se não aperceberem ainda, ou julgarem que podem viver sem ele, o Direito Constitucional é o vértice da pirâmide normativa, e a manifestação suprema da Justiça na Ordem Jurídica.
Estamos em tempo de muitos ataques à Constituição, ao Tribunal Constitucional (seu institucional guardião) e de muito esquecimento da Magna Carta que deveria ser levada a sério como nosso contrato social comum. Mas não se pode deixar de se sentir a permanente interpelação deste ramo do Direito que cura do estatuto jurídico das coisas políticas. E que sempre terá essa dupla essência, quer se queira encobri-la quer não. E quem pretensamente não quer política no Direito Constitucional e deseja “limpar” a Constituição de “ideologia”, já se sabe que política e que ideologia realmente quer: a que sempre se esconde para se fazer crer inevitabilidade, bom senso ou até ciência. É o procedimento de prestidigitação ideológica a que Roland Barthes chamaria “ex-denominação”.
O Direito Constitucional é uma área da atividade e do conhecimento jurídico, classicamente inserida no Direito Público, mas que, pela sua posição de centralidade, expansividade (pela constitucionalização de todo o Direito) e prevalência hierárquica (há uma pirâmide normativa cujo vértice é ocupado pelo Direito Constitucional) relativamente aos demais ramos do Direito, e por de cada um deles, nas Constituições modernas, existirem como que as “cabeças de capítulo” (“têtes de chapitre”), acaba por ter uma transversalidade jurídica e sobretudo uma importância sem par no Direito atual. Apesar da resistência à constitucionalização, quer dos ramos mais cristalizados e dos juristas mais “agelásticos”, quer por via do movimento de desconstitucionalização e desgaste (explosão, implosão e erosão constitucionais) das Constituições de hoje. As quais ainda são, mesmo assim, constituições do Estado de Direito democrático, social e cultural (e de valores).
O objeto do Direito Constitucional é, naturalmente a Constituição, que tem sobretudo três dimensões, que devem ser concordes e harmónicas entre si o mais possível (embora sempre haja disfunções):
a) a constituição formal, que é o texto da Constituição, normalmente codificado (o Reino Unido, contudo, tem uma constituição esparsa, feita de textos e costumes, não reunidos em volume oficial),
b) a constituição material (conceito complexo, que aponta para a consciência jurídico-constitucional do Povo ou Povos a que se refere a Constituição, os seus valores e anseios políticos e o seu génio jurídico) e
c) a constituição real (que acaba por ser a situação real, em cada tempo e lugar, da vivência da Constituição, muito determinada pela correlação de forças políticas em presença).
Sendo estatuto jurídico do político, o Direito Constitucional debruça-se sobre o Estado, as instituições políticas, os fins do Estado e os projetos ou utopias coletivas, assim como os seus mitos fundadores (muitas vezes presentes nos preâmbulos constitucionais), e os poderes estaduais e a sua separação, assim como os Direitos Fundamentais dos cidadãos (sem estes dois últimos elementos não há Constituição, conforme assinala o art. XVI da primeira Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão, francesa, no séc. XVIII). Não só as metas, mas a própria forma que o Direito Constitucional dá ao Estado são a “utopia” em que se pretende viver.
A importância das matérias constitucionais como leis das leis (supralegais) determinaram, em muitos casos, a existência de limites materiais de revisão constitucional, ou cláusulas pétreas, que são o que dá, no limite, feição essencial a uma Constituição. E cuja revisão ou esquecimento constituiria uma revolução (ou contrarrevolução), sendo, desde logo, inconstitucional.
A nossa Dignidade como pessoas, cidadadãos e trabalhadores, os valores e princípios, como Justiça, Liberdade e Igualdade (esta última ainda há pouco tão vital para a interpretação do Acórdão do Tribunal Constitucional sobre cortes de subsídios) não são conceitos vagos manejados por burocratas. Como as polémicas constitucionais vão mostrando, há uma profunda implicação filosófica e cultural nestes instrumentos, com os quais se burila a nossa casa comum de direitos e deveres.
São coisas nossas. Como o património literário ou artístico.
Rejeitar esse legado seria como deitar fogo às bibliotecas e museus, que, como a Constituição, não são Cultura morta, mas vivíssima.
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