A subjetividade na fixação da pena
Em artigo publicado no jornal Valor Econômico, o professor de Direito da USP, Alamiro Velludo Salvador Netto trata do cálculo da pena, sob o esteio do julgamento da AP (Ação Penal) 470, conhecido como julgamento do mensalão. Segundo o professor, apesar do Código Penal trazer critérios legais, isso não traduz que o magistrado seja apenas um mero calculador de penas.
Eis o artigo:
A sistemática para a fixação da pena criminal a ser imposta ao cidadão condenado por algum delito não é, definitivamente, um problema simples. Trata-se, na realidade, de um complicado procedimento jurídico, no qual é possível observar complexidades já no emaranhado de regras impostas ao magistrado, sempre com a finalidade de fazê-lo percorrer um traçado trifásico que diferencia qualificadoras, circunstâncias judiciais, agravantes e atenuantes, causas de aumento e de diminuição. Em resumo, é necessário, para a correta operacionalização dessas normas jurídicas, o conhecimento acerca dessas distinções conceituais e suas etapas de incidência, de tal sorte a não se entender uma coisa por outra e, em consequência, fixar a punição em desconformidade com os parâmetros legais.
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Nesse sentido, nota-se que no caso da Ação Penal nº 470 os diálogos entre os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre tais aspectos são intensos, tantas vezes dotados de rompantes de inconformismos e discórdias. A simples e momentânea desatenção pode, inclusive, conduzir a alguns grosseiros equívocos na estipulação das sanções, como, por exemplo, o estabelecimento da pena de multa para o delito de quadrilha ou bando. Ao se analisar o tipo penal previsto no artigo 288 do Código Penal, percebe-se que a sanção ali cominada se restringe à detenção de um a três anos. Não havendo previsão expressa de multa no preceito secundário da incriminação, não há que se falar nessa modalidade de sanção.
Entretanto, para além das tecnicalidades da fixação da pena, questão outra chama a atenção: em que medida a aplicação da pena deriva de um mero cálculo matemático-legal ou, de fato, implica na concretização de subjetividades ínsitas ao julgador? Em outros termos, até que ponto a lei traz parâmetros rígidos capazes de impedir que a individualidade do magistrado – sua visão de mundo e concepções pessoais – seja o aspecto determinante da quantidade de pena a ser imposta?
Essas indagações refletem duas formas de imaginar o cálculo da pena. Pensando em termos radicais, uma primeira possibilidade seria um método que conseguisse extirpar do procedimento toda a subjetividade do julgador. Assim, a lei seria a única responsável por definir o montante de pena para cada conduta. Assemelhando-se a um catálogo inflexível, para cada crime corresponderia uma pena certa. A segurança jurídica é, aqui, privilegiada. Perde-se, em contrapartida, a capacidade de melhor discernimento acerca das diversidades concretas por detrás da formal igualdade dos rótulos criminais. O Código Penal francês de 1791 optou, sob a égide do legalismo jurídico-burguês, por esse caminho. Hipótese oposta seria a diminuição dos parâmetros legais e, simultaneamente, a maior atribuição de poderes ao magistrado, agora apto a decidir, com ampla liberdade, a punição a ser imposta. Substitui-se a lei pela vontade do magistrado. Abre-se, entretanto, o espaço para o arbítrio, para as desproporções, para um ativismo judicial pouco coadunado com o Estado de direito.
Os franceses, ao aprovarem o Código Penal de 1810 e que substituiria seu antecessor, talvez tenham percebido, já concordando com as velhas máximas de equidade da antiguidade clássica, que a virtude realmente está no meio. Pensou-se, assim, um sistema que pudesse congregar os atributos positivos de ambos os modelos. Isto é, balizar as sanções em termos legais e, ao mesmo tempo, permitir alguma discricionariedade ao julgador, o qual, ao fundamentar sua decisão, buscaria atribuir a mais adequada punição ao caso concreto.
Nesses moldes, possível é dizer que o Código Penal brasileiro traz, sem sombra de dúvida, critérios legais. Entretanto, isso não implica no fato de ser o magistrado um mero calculador de penas. A fixação da pena é inegavelmente um ato de julgamento, ainda que norteado por limites normativos. A discordância presente no Supremo nada mais reflete que essa subjetividade divergente dos ministros. Ainda que em momento algum tenha ficado clara uma razão comum e específica para o ato de punir, nota-se que muitas motivações, ora mais ou menos implícitas, estão presentes. Atender ao apelo da mídia para condenações exemplares, dar o exemplo de que o Brasil não mais será leniente com a corrupção, prevenir novos delitos, retribuir os males ocasionados com as práticas delituosas, opções político-ideológicas são, todas, dimensões subjetivas a justificar penas maiores ou menores. Em suma, não há técnica jurídica que impeça essa dimensão de subjetividade. O necessário – e isso sim se espera – é que tais subjetividades apresentem-se como compreensíveis e racionais.
fonte: Valor Econômico, por Alamiro Velludo Salvador Netto.
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