Vulnerabilidade no Processo Civil 

Em entrevista ao jornal Carta Forense, a advogada e professora Fernada Tartuce discorre sobre o conceito de vulnerabilidade no âmbito do processo civil brasileiro, abarcando exemplos concretos.

Eis a entrevista:

Como a senhora conceitua a Vulnerabilidade no Processo Civil?

Vulnerabilidade processual é a suscetibilidade do litigante que o impede de praticar atos processuais em razão de uma limitação pessoal involuntária; a impossibilidade de atuar pode decorrer de fatores de saúde e/ou de ordem econômica, informacional, técnica ou organizacional de caráter permanente ou provisório.

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Como se percebe, a temática aborda situações de dificuldades e exclusões. Seu enfrentamento é importante porque o Brasil é um país marcado por significativas desigualdades e estas repercutem no processo civil de forma intensa na medida em que alguns litigantes não atuam em condições favoráveis e não conseguem se manifestar em tempo hábil de forma a se desincumbir de seus encargos processuais.

Apesar dessa realidade, a isonomia é uma garantia constitucional, competindo ao juiz  assegurar às partes igualdade de tratamento.

A utilidade da conceituação é permitir com maior clareza que o juiz reconheça a situação vulnerável de um litigante para poder engendrar os esforços aptos a promover o equilíbrio nas oportunidades processuais.

Poderia nos exemplificar um caso de vulnerabilidade processual?

Considere a situação de uma pessoa hipossuficiente e analfabeta que se dirige ao Juizado Especial Cível, sem advogado, para deduzir oralmente uma pretensão. É forçoso reconhecer que há limitações consideráveis em sua atuação processual.

Sendo pobre a ponto de não ter condições de arcar com custas e honorários sem prejuízo do sustento próprio, ela é vulnerável sob o aspecto econômico. A insuficiência pecuniária, porém, não pode constituir óbice ao acesso à justiça, já que a Constituição Federal prevê a garantia de assistência jurídica integral e gratuita aos necessitados. Assim, caso o litigante hipossuficiente precise da produção de ato causador de despesa processual, ele precisará ser dispensado do pagamento nos termos da Lei 1.060/50.

Sendo a pessoa analfabeta, pode ser considerada vulnerável sob o aspecto informacional pelas árduas dificuldades de acesso a dados relevantes. A desinformação pessoal sobre aspectos do direito material e do tramite processual certamente posiciona o jurisdicionado em uma situação altamente desfavorável. Há casos em que litigantes, ainda que alfabetizados, participam de audiências em Juizados Especiais sem advogados e não conseguem entender as expressões usadas pelo magistrado e pelo advogado da outra parte, sofrendo consideráveis limitações de compreensão.

O fato de estar sem advogado torna a pessoa vulnerável sob o viés técnico por não dispor de informações completas sobre ditames do sistema jurídico. A ausência de um profissional do Direito demanda que o juiz atente para a situação da parte e evite que a grande facilitação ensejada pelo jus postulandi se converta em triste armadilha; para tanto, devem o magistrado e seus auxiliares, em postura cooperatória, dar esclarecimentos sobre as informações processuais relevantesde forma clara e acessível.

Nesse cenário, a serventia não pode deixar de considerar as limitações do jurisdicionado. Na intimação dos atos processuais, por exemplo, ante o analfabetismo e a dificuldade de compreensão, ao invés de valer-se do procedimento padrão de envio de intimações por escrito em linguagem eminentemente técnica, deve agir forma a promover a ciência por meios que assegurem seu pleno acesso ao teor das comunicações.

Como se percebe, para que o magistrado cumpra o dever de assegurar igualdade de tratamento aos litigantes é essencial que devote atenção considerável à situação concreta em que estes se encontram. Vale dizer que tal postura não ensejará perda da imparcialidade porque o juiz não irá enfrentar o mérito, mas esclarecerá elementos sobre o trâmite processual de forma isenta.

Qual a polêmica acerca da vulnerabilidade versus hipossuficiência?

A polêmica decorre de ditames do Código de Defesa do Consumidor segundo os quais todo consumidor é vulnerável, mas não necessariamente hipossuficiente. O consumidor é vulnerável por sua debilidade – sobretudo de informações – em comparação ao fornecedor; contudo, para fazer jus ao mecanismo facilitador de inversão do ônus da prova no processo, o Código de Defesa do Consumidor exige a demonstração de que, além de frágil, o litigante é tecnicamente hipossuficiente a ponto de não ter condições de se desincumbir da produção probatória.

Ao buscar lições doutrinarias e aplicações jurisprudenciais, podem ser constatadas díspares compreensões sobre tais conceitos. Considerando o sentido da expressão no dicionário e a tradição do uso da expressão no sistema brasileiro, hipossuficiência é sinônimo de vulnerabilidade econômica. O CDC, porém, menciona também insuficiência técnica, o que enseja diferentes interpretações.

Como se percebe, vulnerabilidade e hipossuficiência não retratam idênticos conceitos. Vulnerabilidade indica suscetibilidade em sentido amplo, sendo a hipossuficiência uma de suas espécies (sob o viés econômico). A polêmica, portanto, decorre do fato de o legislador do Código do Consumidor ter trabalhado os dois aspectos conjuntamente.  Na prática, havendo limitações econômicas e técnicas de produção probatória que inviabilizem o acesso à justiça do consumidor, ele merece ver reconhecida a inversão do ônus da prova.

Como o tema se insere na humanização do processo?

A humanização do processo consiste na valorização do individuo que atua em juízo; no campo processual, ela repercute demandando análise cuidadosa e personalizada dos litigantes – especialmente se estiverem em situações de consideráveis dificuldades.

Vivemos uma época difícil e complexa em que são implementadas técnicas de julgamento conjunto para dar fim a processos repetitivos. A busca dessas ferramentas de apreciação em bloco é compreensível ante a árdua realidade do Poder Judiciário, instituição que vive crise intensa por diversos fatores estruturais e precisa lidar com mais de 90 milhões de processos em tramite.

Apesar desses fatores objetivos, é imperioso recordar que cada demanda cível relata uma história de vida em que se pede a interferência do Estado para definir uma situação jurídica. Por mais que soe interessante para o Poder Judiciário definir a causa em conjunto com outras que parecem semelhantes em seus elementos, é essencial que os protagonistas dos fatos, os jurisdicionados, sejam considerados em sua individualidade e respeitados em sua diversidade.

A atenção à situação de vulnerabilidade busca (re)conhecer a condição do individuo em juízo respeitando seu perfil com vistas a assegurar-lhe oportunidades de atuação a despeito das limitações que possa sofrer por força de dificuldades decorrentes de fatores alheios a sua vontade, retratando postura focada na humanização do processo.

Quais são os fatores objetivos de identificação?

A vulnerabilidade deve ser analisada com base nas condições do litigante, sendo importante identificar critérios objetivos para sua aferição.

Sob o ângulo processual, a partir de constatações na vida social e de previsões engendradas no sistema jurídico, podem ser identificados como critérios legítimos para aferir a vulnerabilidade processual: a insuficiência econômica (hipossuficiência); a existência de insuperáveis óbices geográficos; a ocorrência de debilidades na saúde e/ ou no discernimento; a configuração de dificuldades técnicas (por desinformação pessoal quanto a matérias jurídicas e probatórias relevantes) e a incapacidade de organização.

A insuficiência econômica tem elementos aferíveis a partir da Constituição Federal e da Lei 1.060/50, sendo pautada pela insuficiência de recursos para pagar o custo do processo sem prejudicar o sustento do litigante e de sua família.

A existência de obstáculos geográficos gera consideráveis dificuldades de locomoção ao local da prática dos atos processuais e prejudica a atuação em juízo do jurisdicionado.

Debilidades na saúde e/ou no discernimento do jurisdicionado e de seu advogado podem prejudicar o comparecimento no processo; doenças e crises ligadas à integridade psicofísica precisam ser comunicadas e identificadas como limitações justificadoras de novas oportunidades.

A existência de dificuldades técnicas também precisa ser reconhecida, competindo ao juiz e a seus auxiliares, no cumprimento de seu dever de promover a isonomia, assegurar que os litigantes compreendam os rumos do processo (especialmente se estiverem sem advogados).

A incapacidade de organização pode dificultar sobremaneira a atuação em juízo porque o  vulnerável organizacional não consegue mobilizar recursos e estruturas para sua própria organização pessoal, encontrando restrições logísticas para agir. Assim, se o litigante não conta com um núcleo próprio de instalação (de forma permanente ou por alguma razão temporária, como o despejo) pode ter dificuldades consideráveis para localizar e arregimentar documentos essenciais à sua manifestação em juízo.

A vulnerabilidade constitui justa causa e explica a inviabilidade da prática do ato processual; reconhecida sua ocorrência, o juiz deve viabilizar nova oportunidade para sua realização. 

O que a senhora quer dizer com disparidades estruturais entre os litigantes?

Refiro-me a situações em que há evidente desproporção nas condições dos litigantes em termos de organização. Certas pessoas contam com estrutura limitada de representação jurídica, enquanto outras dispõem de melhores condições de atuação em juízo por contarem com organização mais estruturada.

Para visualizar a ocorrência, basta considerar a diferença entre jurisdicionados que têm a sua disposição grandes bancas de advocacia e indivíduos que têm dificuldade até mesmo de localizar pequenos escritórios que os atendam. Com relação a estes últimos litigantes, encontrar um advogado pode demorar e este fato irá repercutir negativamente na pratica dos atos em juízo. O juiz, ciente de tal ocorrência, deve atuar para envidar esforços no sentido de igualar oportunidades.

Recentemente constatei interessante iniciativa judicial para facilitar a situação de jurisdicionados vulneráveis: ao determinar a citação do demandado, o juiz informou que, caso ele não tivesse condições econômicas de contratar advogado, poderia procurar a Defensoria Pública no endereço que indicava. Este magistrado certamente atentou para a potencial situação de vulnerabilidade e atuou de forma consentânea com a garantia constitucional de acesso a justiça.

Como o tema se aplica onde uma das partes sai prejudicada em decorrência da má qualidade do serviço prestado por seu advogado? O juiz pode interferir?

O tema é delicado, mas exige coerência e coragem em seu enfrentamento. Por força do dever de promover a igualdade de tratamento, é essencial que o juiz revele sensibilidade ao se deparar com um litigante vulnerável sob o aspecto técnico; seu comportamento deve ser colaborativo no que tange a tecer esclarecimentos sobre o procedimento e a possibilitar a prática dos atos processuais aptos a viabilizar que a parte em dificuldades tenha vez e voz a despeito de sua vulnerável situação.

O ordenamento reconhece tal tipo de iniciativa, por exemplo, ao viabilizar a emenda da petição inicial; se o juiz entender que esta não atende os requisitos legais e viola a técnica desejável, aplicará o art. 284 do CPC para permitir que o advogado atue em prol da melhoria do arrazoado. Em uma visão estrita, a má técnica do advogado que ensejou a apresentação da petição incompleta não ensejaria complacência nem chance de reparo. O sistema, porém, adota uma visão diversa: a possibilidade de correção decorre do fato de ser processo instrumento de índole precipuamente pública que merece a aplicação de todos os esforços legítimos em prol da efetividade.

O que vem a ser o vulnerável cibernético?

Vulnerável cibernético é o individuo que sofre dificuldades significativas por força da exclusão digital e tem limitações ao lidar com estruturas informatizadas; pode ser assim considerado quem não tem computador e aparatos adjacentes, assim como também quem, apesar de dispor de equipamentos, revela considerável dificuldade de manipulá-los e acessar informações relevantes.

Em tempos de informatização do processo, é de grande relevância o reconhecimento de tal ordem de dificuldades, já que muitos litigantes podem ter dificuldades de acessar as informações processuais disponíveis apenas on line.

Por força das garantias de acesso à justiça e de publicidade dos atos processuais, cabe aos tribunais organizarem-se para disponibilizar terminais de acesso aos processos informatizados nos fóruns, assim como treinar funcionários para orientar os jurisdicionados a consultar o andamento dos feitos. 

Poderia nos falar um pouco sobre as diferenciações na atuação processual civil e vulnerabilidade?

Ao longo do tempo o legislador foi criando mecanismos para tentar compensar desequilíbrios verificados no processo civil em razão de patentes dificuldades experimentadas por certos litigantes.

Algumas previsões normativas estão baseadas na vulnerabilidade; um caso exemplificativo é o da Lei 1.060/50 ao abordar a assistência judiciária gratuita para litigantes hipossuficientes. Outras previsões, porém, não necessariamente consideram a vulnerabilidade mas favorecem alguns jurisdicionados por critérios outros. Na obra busco analisar as previsões processuais vigentes para aferir se o fator de diferenciação cogitado pelo legislador teve como fundamento a vulnerabilidade do litigante ou outra ordem de critério.

Como exemplo, a regra de competência que permite que a mulher demande em seu domicílio nas demandas sobre divórcio e anulação do casamento pressupôs a marcante vulnerabilidade da mulher em certo momento histórico. A situação muito mudou da década de 70 para cá, especialmente pelo panorama constitucional que prevê a igualdade entre homens e mulheres. Apesar disso, a previsão ainda é aplicada sem questionamentos em alguns julgamentos, enquanto outros magistrados não mais a vêem como apta a incidir.

Sobre o tema merece destaque precedente do STF em que o Relator Min. Joaquim Barbosa se manifestou pela constitucionalidade da regra, porque longe de constituir um privilégio em favor das mulheres, trata-se de “norma que visaria a dar tratamento menos gravoso à parte que, em regra, se encontrava e, ainda hoje se encontraria, em situação menos favorável do ponto de vista econômico e financeiro” (RE 227114/SP).

Há ainda outras diferenciações que merecem análise mais detida para que se possa confirmar a persistência de sua legitimidade nos dias atuais, razão pela qual analiso também os benefícios processuais da Fazenda Pública, a nomeação de curador especial e as regras favoráveis ao idoso, ao enfermo, ao consumidor e ao autor das ações coletivas, dentre outras.

O que vem a ser a desequiparação no processo civil?

Trata-se da diferenciada aplicação das regras processuais em atenção à situações díspares que exigem atitude alinhada à premissa isonômica. Por força do reconhecimento de uma causa legítima que justifique a impossibilidade de o litigante atuar, é imperioso que o juiz lhe proporcione oportunidades concretas de atuação no feito após superadas suas dificuldades. Assim, constatada a vulnerabilidade de um dos litigantes, é possível que este, alegando e demonstrando a ocorrência de uma justa causa, informe o juízo sobre a ocorrência e busque nova possibilidade de praticar o ato processual que não conseguiu realizar.

Como a jurisprudência vem respondendo ao tema?

A jurisprudência vem aplicando garantias, princípios e regras que favorecem a isonomia em atenção às consideráveis dificuldades sofridas por certos litigantes.

Em demandas que retratam problemas envolvendo consumidores com fragilidades aguçadas (por idade avançada, pobreza e/ou analfabetismo), a jurisprudência têm estado atenta para reconhecer a necessidade de diferenciada atuação no campo processual.

Mesmo fora do âmbito do consumidor, merece destaque a crescente ampliação de decisões judiciais que reconhecem a distribuição dinâmica do ônus de provar: malgrado a inexistência de previsão legal, com amparo na doutrina e em precedentes, em demandas sobre responsabilidade de médicos, por exemplo, considerando-se ser mais fácil para o réu do que para o autor provar o fato constitutivo do direito, aplica-se a “teoria da carga dinâmica da prova”.

Espera-se que a iniciativa do advogado que representa o litigante vulnerável encontre a sensibilidade do magistrado no sentido de identificar situações em que o jurisdicionado não se desincumbiu dos ônus processuais por circunstâncias alheias à sua vontade, atuando concretamente em prol da equalização de oportunidades em nome do efetivo acesso (de todos!) à justiça.

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