Ronald Dworkin e o ativismo judicial
Em artigo publicado no site Carta Forense, o juiz federal Eduardo Appio, pós-doutor em Direito Constitucional pela UFPR, doutor em Direito pela UFSC e mestre em Direito pela UNISINOS comenta o ativismo judicial através das ideias de Ronald Dworkin.
O ativismo judicial tem sido considerado como uma ferramenta indispensável para o bom funcionamento da democracia ou, contrariamente, pode ser considerado uma verdadeira anomalia no sistema constitucional dos países que adotam uma Constituição escrita? A pergunta não apresenta uma resposta fácil, na medida em que o próprio conceito de ativismo judicial é controverso. Tradicionalmente, a atividade dos juízes se volta para o passado, resolvendo situações em muitos dos casos já consolidadas pelo tempo e que envolvem litígios entre indivíduos, como nos casos de separação e divórcio ou mesmo no conflito envolvendo vizinhos. Todavia, o Brasil tem assistido, ao longo dos últimos anos, o que muitos reputam como uma quase onipresença do Judiciário na vida política do país. A rígida separação entre as funções legislativa/executiva e a judicial se mostra cada vez menos concreta em nossa realidade diária e, para muitos, mais um instituto que deve ser considerado como obsoleto. Uma tecnologia jurídico/política de grande utilidade nos anos que se sucederam à derrocada dos regimes de origem feudal mas que, em pleno século XXI, traz mais problemas do que soluções. Mais recentemente, membros do Congresso Nacional do Brasil têm criticado, de forma intensa, aquilo que consideram verdadeiro esbulho possessório praticado pelo Supremo Tribunal no plano jurídico/constitucional do país, em questões que vão desde regras de inelegibilidade nas eleições até à forma como as votações são conduzidas pelos parlamentares. Os juízes, de uma maneira geral, não ignoram as dificuldades técnicas que surgem a cada nova incursão no espaço político tradicionalmente reservado aos chamados “membros eleitos pela população” (Legislativo e Executivo), mas afirmam que esta intervenção se mostra absolutamente necessária para a preservação do sentido maior da Constituição. Os limites da intervenção judicial não estão definidos previamente na Constituição de 1988 e dependem, por conseguinte, da interpretação que é dada pelos membros do Supremo Tribunal, órgão que no Brasil pertence ao Poder Judiciário. Aqueles que defendem o ativismo judiciário não raro invocam a voz autorizada de um dos maiores autores da filosofia jurídica contemporânea, Ronald Dworkin, escritor norte-americano recentemente falecido (fevereiro de 2013) e autor de diversos livros publicados no Brasil, dentre os quais ressalto, por exemplo, Levando os Direitos a Sério (Martins Fontes, 2002) e Domínio da Vida (Martins Fontes, 2003). Cito estes dois livros menos porque os considero como as duas obras mais importantes do professor norte-americano e mais porque em ambos os livros Ronald Dworkin trata de reafirmar seu firme compromisso com o direito criado pelos Parlamentos. Somente uma leitura apressada das obras de Ronald Dworkin poderia permitir a defesa intransigente do ativismo judicial para todos os casos.
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Trago à tona a obra de Ronald Dworkin por duas razões fundamentais, ou seja, porque se trata de um importante ícone do direito constitucional contemporâneo rotineiramente citado em decisões judiciais e teses acadêmicas de nossas universidades; e, ainda, porque em muitos dos casos a sua obra é invocada para dizer exatamente o oposto do que o professor norte americano defendia. Tive a oportunidade de ser aluno de Ronald Dworkin na NYU em 2007 e já conhecia boa parte de sua obra já há algum tempo. As aulas em Nova York apenas me confirmaram a impressão já previamente colhida nos livros, ou seja, que se tratava de um autor profundamente comprometido com a idéia de que os juízes, mesmo ao decidir os casos difíceis, o fazem com estrito respeito às regras democráticas e à existência de uma Constituição escrita. A idéia de que o juiz deve interpretar o direito como um todo nos casos difíceis – direito como integridade – e o dever de tomar em consideração princípios maiores de igualdade e de dignidade da pessoa humana (princípios, inclusive, que reforçavam as idéias de um outro importante autor que lhe antecedeu, John Rawls) são os pilares de sua pensamento. É exatamente no estudo dos chamados casos difíceis (hard cases) que Ronald Dworkin repudia a idéia de que um ativismo judicial por atacado que sirva como verdadeira panacéia para todos os males. Muito embora tenha sempre escrito a partir da realidade dos Estados Unidos e da Inglaterra, a atividade judicial era seu laboratório por excelência e daí a renovada importância de sua obra para nós brasileiros, dada a universidade do fenômeno da interpretação constitucional pelos juízes. Mesmo nos casos difíceis, para os casos ainda não existe nenhuma regra legislada, “(…) o juiz continua tendo o dever, mesmo nos casos difíceis, de descobrir quais são os direitos das partes, e não de inventar novos direitos retroativamente.” (Levando os Direitos a Sério, p. 127) e “uma Constituição de princípios, colocada em prática por juízes independentes, não é antidemocrática. Ao contrário, uma das precondições da democracia legítima encontra-se na exigência de que o governo trate todos os cidadãos como iguais e respeite suas liberdades fundamentais e sua dignidade.” (Domínio da Vida, p. 172). Existem, portanto, limites claros ao ativismo e à intervenção judicial no espaço político, quais sejam, (1) solucionar casos para os quais ainda não exista uma regra legislada pelo Parlamento (ditos “casos difíceis”); e (2) que nestes casos, a interpretação judicial da Constituição se dê com a estrita finalidade de assegurar que o Estado trate todos com igual consideração e respeito, por razões de princípio e tutela dos direitos individuais (vistos pelo autor como um verdadeiro trunfo contra as políticas de cunho utilitário). Não se trata, por conseguinte, de uma defesa do ativismo judiciário em todos os casos. Em havendo uma regra legislada que não conflite com a Constituição, ela deve ser fielmente aplicada pelos juízes. Ao mesmo tempo, o ativismo judicial não pode servir como um escudo das maiorias que já dispõem de suficiente representação política nos Parlamentos e no Poder Executivo graças às eleições. Muito pelo contrário, serve à tutela emergencial do direito das minorias, sempre que constada a intenção e o resultado discriminatório. Invocar a voz e a obra de Ronald Dworkin como justificação para um governo dos juízes e para o populismo judicial representa, em última análise, uma distorção de seu pensamento e de sua obra, violando princípios de democracia representativa tão caros à longa tradição inglesa e norte americana.
FONTE: Carta Forense, por Eduardo Appio.
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