A Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Paraná. Art. 649, IV, do CPC: Regra ou Princípio?

Jus Navigandi, por Marcelo Pichioli da Silveira

Como se sabe, o art. 649 do Código de Processo Civil tem um rol de incisos a serem considerados “absolutamente impenhoráveis” (caput do art. 649). O inciso IV, com a redação dada pela Lei nº 11.382/2006, prevê como sendo, pois, absolutamente impenhorável:

 “os vencimentos, subsídios, soldos, salários, remunerações, proventos de aposentadoria, pensões, pecúlios e montepios; as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal, observado o disposto no § 3o deste artigo.”

 Referido dispositivo costuma ser interpretado gramaticalmente, sob fundamento, talvez, do condão de norma pública que ele carrega consigo: norma de direito processual (portanto, de direito público), que requer, então, legalidade estrita. E é com base nisso, diz José Miguel Garcia Medina, que a “restrição [do art. 649, inciso IV, do CPC] tem sido empregada em relação à penhora on line de ‘contas-salário’” [1].

Embora o presente texto não tenha, a priori, a intenção de imediatamente emitir um parecer do assunto (= favorável? Vs. não favorável?), é preciso salientar três ordens de raciocínio, adiante consideradas:

1ª) Primeiramente, deve-se salientar um ponto mais elementar do assunto, e pouco notado na doutrina em geral: a origem do inciso IV do art. 649 do Código de Processo Civil. Como visto, sua redação advém da Lei nº 11.382/2006. Ela, já advertimos antes, “alterou profundamente a tutela executiva brasileira” [2]. Para Márcio Louzada Carpena, teve a norma o propósito de “impor à atual sociedade, dentro dos valores hoje presentes, novas regras instrumentais para permitir que os anseios legítimos da sociedade contemporânea […] sejam, dentro dos limites dos valores sedimentados por ela mesma, satisfeitos da maneira mais adequada possível” [3]. Este contexto normativo, praticamente atento à uma hermenêutica voluntas legis, não pode ser desconsiderado.

2ª) Alguns entendimentos dogmático-jurídicos demandam tempo para aceite, por inúmeros fatores que, se vistos um a um, extrapolam a própria competência da Ciência do Direito. Como exemplo disto, vale o lembrete da relativa “demora” por parte de muitos Magistrados em utilizar, na execução civil, o “sistema Bacen Jud” [4] ou mesmo o “Renajud” [5]. Era comum, há pouco tempo, na praxe forense, despachos e/ou decisões interlocutórias no sentido de que “este Juízo não está cadastrado no sistema Bacen Jud…”. Foi com o tempo que os ventos mudaram. Atualmente, já não mais se questiona a utilização do sistema Bacen Jud, e a fonte do Direito mais responsável por isto foi a doutrina [6].

3ª) A terceira consideração é muito próxima à segunda, mas evidencia o papel da jurisprudência no assunto que será aqui tratado. Ainda há divergência, e a posição majoritária é a que observa a interpretação gramatical do art. 649, inciso IV, do CPC.

Isto posto, resta apenas salientar que o rigor metodológico empregado neste texto é inspirado na tese de Doutorado de Luiz Rodrigues Wambier [7], que encontrou o que ele próprio chama de “dano igual a zero” nas liquidações coletivas de sentença. Em entrevista ao Programa Illuminuras, da TV Justiça, disse Wambier, com sua habitual clareza – não nas exatas palavras –, o seguinte: “penso que sempre, quando vamos pesquisar jurisprudência, é preciso ter uma noção de tempo e de espaço. Deve-se delimitar um tempo e um espaço. [Em sua tese de Doutorado] o tempo foi dois anos. E o espaço dez tribunais estaduais” [8].

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O critério do referido processualista tem muita relevância, até porque, segundo pensamos, é obscura (passível de embargos de declaração, queremos dizer) uma decisão ou uma sentença que é fundamentada, v. g., com uma jurisprudência de Recurso Especial julgado num ano “x” que é pretérito ao ano da redação de determinada Lei (isso ocorre muito com Leis Processuais, que tem aplicação imediata) [9]. Logo, o espaço utilizado, neste texto, é evidenciado pelo seu próprio título: decisões do Tribunal de Justiça do Paraná. E o tempo é o último trimestre de 2012 (01 de outubro até 31 de dezembro de 2012) [10][11], até porque não há nenhum ensaio de doutoramento aqui. Mera apreciação de recentes jurisprudências. Esse é o critério metodológico da pesquisa jurisprudencial aqui feita. Ademais, tentamos examinar, na medida do possível, as particularidades do caso concreto, nos termos das decisões que foram examinadas. Não se tratam, portanto, de meras citações de ementas.

 Caso 1 – TJPR, Agravo de Instrumento nº 866990-7. Rel. Des. Benjamim Acacio de Moura e Costa, 12ª Câmara Cível. DJ 18.12.2012. DJe 03.06.2013.

O que fez: reformou uma decisão e impediu a penhora, via Bacen Jud, ante a natureza salarial dos valores bloqueados. Fundamentos: “[…] daí, conquanto admita-se a possibilidade da penhora pelo sistema do Bacen Jud, preferindo, inclusive, a outros bens do executado, conforme reiterados julgados desta Câmara, na aplicação da referida medida devesse igualmente observar o disposto no artigo 649 e seus incisos do CPC, que estabelece o rol dos bens impenhoráveis, dentre os quais se encontram os vencimentos, proventos de aposentadoria, depósitos em caderneta de poupança etc., representando, assim, impedimento processual inclusive para a hipótese da penhora on line. Tecidas tais considerações, o ato atacado deve ser reformado, pois configurada a natureza de conta salário dos valores bloqueados”.

Particularidades: segundo o julgado, “o artigo 655-A do Código de Processo Civil, em seu parágrafo 2º, atribui ao executado o ônus de comprovar que as quantias depositadas em conta corrente se referem à hipótese do inciso IV, ou do inciso X, caput do artigo 649 do mesmo diploma legal, ou que estejam elas protegidas pela garantia da impenhorabilidade”. Esta realmente parece ser a posição do TJPR e do STJ: “sendo direito do exequente a penhora preferencialmente em dinheiro (art. 655, inciso I, do CPC), a impenhorabilidade dos depósitos em contas correntes, ao argumento de tratar-se de verba salarial, consubstancia fato impeditivo do direito do autor (art. 333, inciso II, do CPC), recaindo sobre o réu o ônus de prová-lo”[12].

Nossa Conclusão: do teor, extraiu-se da decisão um entendimento no sentido de ser absolutamente impenhorável toda e qualquer verba salarial. Ao executado, porém, há o ônus de provar que a fonte da verba é, realmente, salarial, consoante mencionado no quadro “particularidades”, supra.

Em sentido parecido ou igual:

a) TJPR, Apelação Cível nº 975401-6. Rel. Des. Celso Jair Mainardi, 14ª Câmara Cível. DJ 12.12.2012. DJe 23.01.2013 – “[…] em se tratando […] de débitos efetuados na conta destinada ao recebimento de salário, deve ser observada a garantia de impenhorabilidade, conferida tanto pelo art. 7º, X, da Constituição Federal como pelo art. 641, IV do Código de Processo Civil”.

b) TJPR, Apelação Cível nº 969001-9. Rel. Des. Celso Jair Mainardi, 14ª Câmara Cível. DJ 12.12.2012. DJe 23.01.2013 – “tem-se que a proteção do salário possui como fundamento não só a garantia do sustento próprio do trabalhador, como também o de sua família, estando escorada no princípio da dignidade da pessoa humana. Daí porque, não é dado à instituição financeira efetuar a retenção de verba salarial depositada em conta corrente para efeito de amortizar saldo devedor contraído pelo correntista em virtude operações financeiras, tais como o contrato de abertura de crédito em conta corrente e o mútuo, devendo, em caso de inadimplência, recorrer à via judicial para cobrança do débito. Ora, se nem ao Poder Judiciário é conferida a possibilidade de penhora de verba salarial, em razão da expressa vedação legal constante dos dispositivos alhures transcritos, por certo que aos particulares também não é estendida tal faculdade”.

c) TJPR, Apelação Cível nº 983537-6. Rel. Des. Jurandyr Souza Junior, 15ª Câmara Cível. DJ 12.12.2012. DJe 22.01.2013.

d) TJPR, Agravo de Instrumento nº 929042-8. Rel. Des. Cláudio de Andrade, 13ª Câmara Cível. DJ 05.12.2012. DJe 22.01.2013 – “O despacho agravado é de ser mantido, eis que efetivamente inócua se mostra a expedição de ofício à Comarca de Major Vieira para averiguar o valor do salário do agravado, por efetivamente ser ilegal o procedimento de sua penhora. A penhora do salário afronta a dignidade humana por se tratar de remuneração de caráter alimentar, impenhorável pela regra do artigo 649, inciso IV, do Código de Processo Civil […]. Logo, diante do fato de não ser possível a penhora do salário, o indeferimento de expedição de ofício à Receita Federal é medida que se impõe”.

e) TJPR, Apelação Cível nº 931697-4. Rel. Des. Laertes Ferreira Gomes, 14ª Câmara Cível. DJ 05.12.2012. DJe 23.01.2013 – “[...] De igual modo, não merece guarida o argumento no sentido de que o desconto direto é a única forma viável que o Banco apelante possui para cobrar a valor mutuado, isto porque, cabe a qualquer credor, inclusive ao Banco, a propositura de ação própria para ver ressarcido seu crédito. Aliás, reitere-se que, nem mesmo ao Judiciário é lícito penhorar salários, logo, e com maior vigor, não será a instituição privada autorizada a fazê-lo”.

f) TJPR, Apelação Cível nº 938567-9. Rel. Des. Laertes Ferreira Gomes, 14ª Câmara Cível. DJ 05.12.2012. DJe 13.12.2012.

g) TJPR, Apelação Cível nº 889698-6, Rel. Des. Magnus Venicius Rox, 16ª Câmara Cível. DJ. 05.12.2012. DJe 12.12.2012.

h) TJPR, Apelação Cível nº 979012-5. Rel. Des. Rubens Oliveira Fontoura, 1ª Câmara Cível. DJ 04.12.2012. DJe 13.12.2012 – “analisando os autos verifica-se que a Ordem Judicial de Bloqueio de Valores recaiu sobre uma conta corrente aberta perante o banco HSBC, no valor de R$ 85,45 […], a qual é utilizada pelo Apelado para o recebimento de seu salário, conforme se constata através dos holerites juntados aos autos (fls. 41/43). Desta forma, a constrição viola o artigo 649, IV, do CPC, motivo pelo qual deve ser mantida a decisão do juízo de origem que determinou o desbloqueio dos valores”.

i) TJPR, Agravo de Instrumento nº 930548-2. Decisão monocrática. Rel. Des. Fernando Wolff Bodziak, 11ª Câmara Cível. DJ 29.11.2012. DJe 04.12.2012 – “[…] assim, o agravante demonstrou que os valores bloqueados/penhorados são referentes a sua remuneração como servidor temporário junto à Prefeitura do Município de Londrina, tendo, portanto, natureza alimentar e em consequência, é absolutamente impenhorável de acordo como art. 649, IV do CPC e jurisprudência do Colendo Superior Tribunal de Justiça […]”.

j) TJPR, Agravo de Instrumento nº 926293-3. Rel. Des. Paulo Habith, 3ª Câmara Cível. DJ. 20.11.2012. DJe 26.11.2012 – “[…] a decisão que autorizou a penhora de 30% sobre o valor do salário mínimo, bloqueada na conta do executado, deve ser reformada, em consonância que o disposto no artigo 7º, “X” da Constituição Federal de 1988 e 649, IV, do CPC”.

k) TJPR, Apelação Cível nº 952692-9. Rel. Des. Francisco Eduardo Gonzaga de Oliveira, 16ª Câmara Cível. DJ 07.11.2012. DJe 21.11.2012.

l) TJPR, Apelação Cível nº 910426-5. Rel. Des. Jurandyr Souza Junior, 15ª Câmara Cível. DJ 17.10.2012. DJe 12.11.2012 – “[…] ainda que admitida a penhorabilidade de valores existentes em conta corrente do devedor, as verbas salariais não podem ser objetos de contrição, nem mesmo se limitadas ao percentual de 30%, em razão da impenhorabilidade absoluta, prevista no art. 649, IV do CPC”.

m) TJPR, Agravo de Instrumento nº 927471-1. Rel. Des. Cláudio de Andrade, 13ª Câmara Cível. DJ. 10.10.2012. DJe 23.10.2012 – “a regra do art. 649, IV do CPC é de ser aplicada de maneira absoluta”.

 Caso 2 – TJPR, Agravo de Instrumento nº 950735-1. Rel. Des. Guimarães da Costa, 8ª Câmara Cível. DJ 13.12.2012. DJe 23.01.2013.

O que fez: apreciou Agravo de Instrumento que atacava decisão na qual o Juiz a quo determinou que 30% do salário do executado fosse depositado em juízo diretamente por seu empregado [13]. Reconhece que o art. 649, inciso IV, do CPC, “visa garantir os meios necessários à sobrevivência do executado, diante de sua natureza alimentar”, porém, relativiza a norma com o argumento de que “há determinadas situações que merecem ponderação, sob pena de injustiça da decisão”.

Particularidades: no caso do julgado, o agravante (sendo executado) tinha vencimentos de R$ 15.796,82. Mas o Relator do caso notou uma transferência mensal de R$ 3.000,00, o que indicaria “a sobra mensal de valores que, por se tratarem de investimento, perdem sua natureza familiar”.

Nossa conclusão: essa decisão tem entendimento que relativiza, como visto, o art. 649, inciso IV, do CPC, que parece acolher a tese de que “a penhora de parte da remuneração recebida pelo executado, em percentual razoável” é possível se não prejudicar sua própria subsistência ou a de sua família [14].

Em sentido parecido ou igual:

a) TJPR, MS nº 20120003493-4. Rel. Des. Fernanda de Quadros Jorgensen Geronasso. DJ 20.11.2012. DJe 29.11.2012 – “o artigo 5º, inciso LXIX da Constituição Federal autoriza a impetração do mandado de segurança para ‘proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas-corpus ou habeas-data, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público’. Deste dispositivo, infere-se que dois são os fundamentos para a concessão do mandamus, quais sejam, a existência de um direito líquido e certo; e, um ato ilegal e abusivo por parte do Poder Público. No presente caso, não vislumbro qualquer ilegalidade ou abusividade na decisão atacada, posto que acertado o pronunciamento judicial que decidiu pela penhora de 30% da aposentadoria do impetrante. Isto porque, conforme já ponderado na apreciação do pedido liminar, esta Turma já consolidou o entendimento sobre a possibilidade da penhora sobre a renda: Enunciado N.º 13.18­ Penhora ­ conta salário: Não existindo outros bens a satisfazer o crédito exequendo, possível a penhora de conta-salário no limite de 30%”.

b) TJPR, Agravo de Instrumento nº 947038-2. Rel. Des. Victor Martim Batschke, 7ª Câmara Cível. DJ 13.11.2012. DJe 05.12.2012 – “não obstante a regra do artigo 649, inciso IV do Código de Processo Civil, acerca da impenhorabilidade dos proventos de aposentadoria, a jurisprudência nacional, em busca da efetividade da tutela jurisdicional, vem mitigando a aplicação do dispositivo em comento e admitindo a penhorabilidade de, no máximo, 30% (trinta por cento) sobre os valores ditos como impenhoráveis. Assim, em determinadas circunstâncias, é possível efetuar o bloqueio de parte da remuneração ou proventos do devedor para a satisfação do crédito do Exequente, em observância à responsabilidade patrimonial do executado. Isto porque, em alguns casos, há a necessidade de garantir a efetividade do processo de execução, dentro de um juízo de razoabilidade, pois a essência da norma acima mencionada é garantir a dignidade da pessoa humana, ao proteger a subsistência do devedor e de sua família que não necessariamente corresponde ao valor total do montante salarial. Desta forma, analisando cada caso concreto, entendo que é autorizado ao magistrado estabelecer um patamar nunca superior a 30% (trinta por cento) dos valores oriundos de remuneração ou benefícios previdenciários, para o cumprimento da obrigação”.

c) TJPR, Agravo de Instrumento nº 939898-3. Rel. Des. Benjamim Acacio de Moura e Costa, 12ª Câmara Cível. DJ 13.11.2012. DJe 03.12.2012 – “o fato de a jurisprudência ter-se inclinado em admitir a penhora de parte de salários, proventos e pensões do devedor, revela um prestígio e – porque não dizer – uma forma de fomentar essa modalidade de constrição judicial, que, indubitavelmente, é a mais eficaz. Deveras, a tendência jurisprudencial vai ao encontro da novel ordem processual que, por sua vez, tem dispensado atenção especial à efetividade da prestação jurisdicional, no sentido de garantir ao demandante vencedor a consecução do direito material deduzido em Juízo. Para tanto, as novas disposições processuais convergem para uma execução mais célere e eficiente. Nesse diapasão, deve-se admitir a relativização da impenhorabilidade dos depósitos em conta-salário, desde que condicionada à parcela de, no máximo, 30% (trinta por cento). Cumpre assinalar que o percentual supramencionado corresponde a um limite máximo, de modo a não comprometer o sustento do devedor e de sua família e, lado outro, também alcance os ativos financeiros do executado de modo menos gravoso possível. Não por outra razão, o art. 11 do Decreto n. 4.961/04, que regulamentou o art. 45 da Lei n. 8.112/90, prevê o limite de 30% (trinta por cento), a título de margem consignável para descontos em folha de pagamento, cujo percentual máximo existe justamente para salvaguardar a remuneração do servidor e não comprometê-la com pagamentos de empréstimos. O certo é que o dinamismo social fez com que parte da jurisprudência, à qual me filio, considere possível a relativização da impenhorabilidade de salário, a partir da mencionada margem consignável de 30% (trinta por cento) imposto pelo referido Decreto”.

 Caso 3 – TJPR, Agravo de Instrumento nº 906447-5. Rel. Des. Angela Maria Machado Costa, 12ª Câmara Cível. DJ 12.12.2012. DJe 14.02.2013.

O que fez: apreciou Agravo de Instrumento que atacava decisão na qual o Juiz a quo indeferiu pedido de penhora de um percentual do salário dos executados. Deixou clara a decisão o entendimento da Relatora no sentido de ser “possível a penhora de parcelas dos salários líquidos dos recorridos”, porém reconheceu que não havia, nos autos, documentação que indicasse a “possibilidade financeira de os agravados adimplirem o débito reclamado no percentual de 30%”. Chegou, pois, à seguinte conclusão: “fim de não causar prejuízos à subsistência digna dos agravados e de suas famílias, observando, com isso, o princípio da dignidade da pessoa humana estabelecido no artigo 1º, inciso III c/c da Constituição Federal, vejo por bem em determinar que a penhora recaia apenas sobre 10% (dez por cento) dos salários líquidos de cada um, excetuando- se os descontos obrigatórios”.

Particularidades: neste caso, havia uma particularidade muito interessante, já que o objetivo do Agravo de Instrumento era a busca da penhora de percentual do salário dos agravados para o pagamento de honorários advocatícios. Logo, “tanto os salários dos agravados quanto os honorários advocatícios exequendos correspondem a verbas de natureza alimentar. Nessa linha de raciocínio, não se pode tomar por absoluta a regra inserta na previsão legal do artigo 649, inciso IV do Código de Processo Civil, no sentido de que o salário é bem absolutamente impenhorável, notadamente, porque servirá para pagamento de dívida de natureza alimentar”.

Nossa conclusão: a decisão também admite a penhora de salários, mas entendeu por razoável o quantum de 10% do salário dos executados, com fundamento no art. 1º, inciso III, da CF (dignidade da pessoa humana). Também vislumbra a interessante hipótese de colisão da própria previsão contida no art. 649, IV, do CPC: salário Vs. Salário.

Em sentido parecido ou igual:

a) TJPR, Agravo de Instrumento nº 953835-8. Rel. Des. Luiz Antonio Barry, 7ª Câmara Cível. DJ. 04.12.2012. DJe 24.01.2013 – “A jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça somente tem admitido a penhora de verbas de natureza alimentar, bem como de valores decorrentes de FGTS, depositadas em conta-corrente, nas hipótese de execução de alimentos. Nas demais execuções, as referidas verbas estão resguardadas pela impenhorabilidade prevista no art. 649, inciso IV, do Código de Processo Civil”.

b) TJPR, Agravo de Instrumento nº 771947-7. Rel. Des. Laertes Ferreira Gomes, 14ª Câmara Cível. DJ. 17.10.2012. DJe 09.11.2012 – “a recorrente […] é credora de quantia superior a R$ 3.000.000,00 (três milhões de reais) decorrente da ação trabalhista ajuizada em face de seu antigo empregador. De se observar, assim, que a constrição realizada no rosto dos autos da ação trabalhista não ultrapassa 15% do total devido pela agravante […]. De se frisar, ademais, que a regra constante do art. 649, do CPC, visa garantir aos executados, o indispensável a sua sobrevivência e de sua família, não se coadunando com a referida norma, à proteção de quantias consideráveis, como ocorre na hipótese dos autos. Veja-se que, no caso em tela, a constrição foi inferior a 15% do crédito que a segunda agravante detém perante a justiça do trabalho, cujo montante ultrapassa a cifra de R$ 3.000.000,00 (três milhões de reais). Ora, por certo que o valor remanescente, é mais do que suficiente para manutenção dos agravantes, até mesmo porque os recorrentes não fazem prova de sua condição econômica, nem que o valor bloqueado irá comprometer sua subsistência. Além disso, a jurisprudência admite a penhorabilidade de, no máximo, 30% (trinta por cento) das verbas salariais, em situações de excepcionalidade. Isto ocorre diante da necessidade de garantir a efetividade do processo executivo, dentro de um juízo de razoabilidade, pois a essência da norma acima referida é garantir a dignidade da pessoa humana, ao proteger a subsistência dos executados e de sua família. Tal aspecto visa, ainda, respeitar os princípios que circundam a execução, tais como o da responsabilidade patrimonial do executado e o do resultado, buscando, assim, garantir a sua efetividade. Ademais, é certo que a não relativização da impenhorabilidade das verbas salariais tende a corroborar com o enriquecimento ilícito dos executados.

Deste modo, não se justifica, no caso, o reconhecimento da impenhorabilidade dos créditos trabalhistas, em detrimento do pagamento da dívida em favor da agravada”.

 Caso 4 – TJPR, Agravo de Instrumento nº 966232-2. Rel. Des. Rafael Vieira de Vasconcellos Pedroso, 13ª Câmara Cível. DJ 05.12.2012. DJe 13.12.2012.

O que fez: apreciou Agravo de Instrumento que atacava decisão na qual o Juiz a quo deferiu penhora de 30% de créditos do executado. Nos fundamentos da decisão, consta que “não obstante a fundamentação empregada na decisão recorrida e nas contrarrazões, não há previsão legal para penhora de salário ou de honorários profissionais, ainda que assegurado percentual suficiente para a subsistência”. Assim, afastou a tese da penhorabilidade sob o seguinte argumento: “a única ressalva prevista na lei para a penhora de salário refere-se à execução do crédito alimentar. No caso em apreço o crédito que a agravada busca receber não possui esta natureza alimentar”.

Particularidades: aqui, o Agravo de Instrumento era intempestivo, mas o Relator, no caso, aduziu que “por se tratar de matéria de ordem pública (penhora sobre verba alimentar), sua legalidade pode ser questionada a qualquer tempo e grau de jurisdição”, dando suporte, pois, ao seu juízo de admissibilidade.

Nossa conclusão: a decisão não admitiu a penhora dos salário/vencimentos sob uma orientação mais estrita e legalista. Nos fundamentos, o Relator mencionou uma jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça no seguinte sentido: “os rendimentos do trabalho profissional como médico estão alcançados pela regra do art. 649, IV, do Código de Processo Civil, sendo, portanto, impenhoráveis” [15].

Com todo respeito ao conteúdo da decisão prolatada no TJPR, segundo pensamos, ela poderia sofrer embargos de declaração por obscuridade neste ponto, porque – como salientado no começo deste artigo – o art. 649, inciso IV, do CPC, conta hoje com redação dada pela Lei nº 11.382/2006, sendo que o REsp citado pelo Douto Desembargador foi julgado em 2004. É dizer: apreciava direito objetivo diferente, em contexto diferente [16].

CONCLUSÕES

Como já advertimos, o objetivo do texto em mãos não é o de zerar o assunto, ou então emitir uma opinião definitiva a respeito. Talvez ele merecesse o título de “ensaio”.

O que se nota, porém, é que o entendimento de que é possível penhorar verbas com natureza jurídica salarial ainda é minoritário, embora tenha começado a ganhar corpo (ao menos, evidentemente, no Tribunal de Justiça do Paraná).

Segundo pensamos, há um caso acima mencionado que merece ser novamente apreciado. No Agravo de Instrumento nº 906447-5, cujo Relatório coube à Desembargadora Angela Maria Machado Costa (TJPR – 12ª Câmara Cível), o recurso visava impugnar decisão na qual o Juiz a quo indeferiu pedido de penhora de um percentual do salário dos executados. E o entendimento da Relatora foi no sentido de ser “possível a penhora de parcelas dos salários líquidos dos recorridos”, ante ao seguinte argumento:

 “não havia, nos autos, documentação que indicasse a “possibilidade financeira de os agravados adimplirem o débito reclamado no percentual de 30%”. Chegou-se, pois, à seguinte conclusão: “fim de não causar prejuízos à subsistência digna dos agravados e de suas famílias, observando, com isso, o princípio da dignidade da pessoa humana estabelecido no artigo 1º, inciso III c/c da Constituição Federal, vejo por bem em determinar que a penhora recaia apenas sobre 10% (dez por cento) dos salários líquidos de cada um, excetuando- se os descontos obrigatórios”. Logo, “tanto os salários dos agravados quanto os honorários advocatícios exequendos correspondem a verbas de natureza alimentar. Nessa linha de raciocínio, não se pode tomar por absoluta a regra inserta na previsão legal do artigo 649, inciso IV do Código de Processo Civil, no sentido de que o salário é bem absolutamente impenhorável, notadamente, porque servirá para pagamento de dívida de natureza alimentar” [17].

É desse fragmento jurisprudencial que emprestamos o fundamento da tese que passamos a defender: o art. 649, inciso IV, do Código de Processo Civil é um princípio, e não uma regra. Um leitor atualizado em temas de Teoria Geral do Direito (ou mesmo Direitos Fundamentais e/ou Direito Processual Civil) possivelmente atrelaria referida assertiva aos ensinamentos de Robert Alexy (com razão). Vejamos isto de forma sucinta (sem escopo de adentrar na grandeza teórica de Robert Alexy).

Pode-se dizer que, para Alexy, regras princípios estão abarcados num todo (= normas), já que o conteúdo de cada é um comando, um dever ser. As regras e os princípios embasam e fundamentam decisões em casos concretos. Mas ambos tem uma metodologia de aplicabilidade diversa. Segundo Robert Alexy,

“Los princípios son mandatos de optimización com respecto a las posibilidades jurídicas y facticas. La máxima de la proporcionalidad em sentido estricto, es decir, el mandato de ponderación, se sigue de la relativización com respecto a lãs possibilidades jurídicas” [18].

 Assim, a grande diferença entre uma regra e um princípio pode ser explicada por frase que até soa como uma anedota: “nas regras, vale o preceito ‘all in’ (= tudo em jogo). Podem ser cumpridas, ou não, e ponto final. Já os princípios podem colidir entre si no plano abstrato”. E é justamente nesse raciocínio que “as colisões de direitos fundamentais devem ser consideradas como uma colisão de princípios, sendo que o processo para a solução de ambas as colisões é a ponderação” [19].

Portanto, se é o art. 649, IV, do CPC, um princípio, deve ele, em eventual colisão com outro princípio, ser ponderado. No confronto, p. ex., dos princípios da máxima efetividade, aliado à menor restrição possível (ambos mencionados pela dogmática processual civil, quando se examina a tutela executiva) com o “princípio da impenhorabilidade de salários” e, mesmo, da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, CF), deverá o Magistrado sopesar os preceitos, já que são as “verdades fundantes de um sistema” (como Miguel Reale costumava conceituar os princípios jurídicos [20]), e chegar a um resultado que melhor se adeque ao caso concreto. Exemplo: imagine que o sujeito “A” execute o sujeito “B”“B” deve pagar para “A” R$ 5.000,00. “B” tem vencimento de aproximadamente R$ 8.000,00, e é solteiro. Seus gastos mensais não passam de R$ 3 mil. Após diligências de “A”, ficou evidente que “B” não tinha bens para saldar a dívida com “A”, o qual pede, pois, a penhora de parte dos vencimentos de “B”. Nesta casuísta, o bom senso parece mostrar ser dificultoso (e constrangedor…) ao Magistrado decidir pela impenhorabilidade.

Não há uma verdade neste assunto. Uma e outra tese (podem) convencer. Isso é uma característica (das mais belas) da Ciência do Direito. Daí a importância (talvez a obrigação) de todo jurista ler obras como “O Caso dos Exploradores de Cavernas”, famoso caso fictício de Lon Luvois Fuller. Na obra, os 2º e 3º votos, respectivamente dos Ministros J. Foster e J. Tatting são altamente oportunos do ponto de vista jurídico, mas diametralmente opostos em suas conclusões (não apenas jurídicas, mas filosóficas) [21]. Certo ou errado? Impossível responder.

Convém mencionar que o art. 2º do Código de Ética da Magistratura Nacional, prescreve que “ao magistrado impõe-se primar pelo respeito à Constituição da República e às leis do País, buscando o fortalecimento das instituições e a plena realização dos valores democráticos”. É de se avisar que a “plena realização dos valores democráticos” não poderá, nunca, depender de hermenêuticas apenas apegadas à literalidade das leis. Há toda uma gama axiológica por trás da atividade do Juiz, que, no século XXI, detém em si uma função social. Tal dado acaba abrindo leque para as novas afirmações que surgem a respeito do ofício do Magistrado… Exata noção no que se refere ao assunto aqui enfrentado. Fábio Konder Comparato, por exemplo, defende ser um equívoco pensar em analisar a lide – “eticamente…” – adotando a tese de que o Poder Judiciário “não é um órgão político” [22].

BIBLIOGRAFIA UTILIZADA

ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madri: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 2001.

 BANCO CENTRAL DO BRASIL. Sistema Bacen Jud. Disponível em: <http://www.bcb.gov.br/?BCJUDINTRO&gt;. Acesso em 18 set. 2012).

 CARPENA, Márcio Louzada. Da não apresentação de bens passíveis de penhora e das multas. In: SANTOS, Ernane Fidélis dos; WAMBIER, Luiz Rodrigues, NERY JR., Nelson; ALVIM WAMBIER, Teresa Arruda. (Orgs.). Execução Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, v. 1, p. 484-493.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Renajud. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/programas-de-a-a-z/sistemas/renajud&gt; Acesso em 18 set. 2012.

 FULLEN, Lon Luvois. O Caso dos Exploradores de Cavernas. Trad. Ivo de Paula. São Paulo: Livraria e Editora Universitária de Direito, 2008.

 JÚDICE, Mônica Pimenta. Robert Alexy e a sua teoria sobre os princípios e regras. Consultor Jurídico, São Paulo, mar. 2007. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2007-mar-02/robert_alexy_teoria_principios_regras&gt;. Acesso em: 26 jun. 2013.

 KOMPARATO, Fábio Konder. O Papel do Juiz na efetivação dos Direitos Humanos. Direitos Humanos – Visões Contemporâneas (Associação Juízes para a Democracia), São Paulo.

 MARINONI, Luiz Guilherme. Penhora on line. Revista Jurídica, n.365, p.45, mar. 2008.

 MEDINA, José Miguel Garcia. Código de Processo Civil Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

 REALE, Miguel. Filosofia do direito. São Paulo. Saraiva. 2002.

 SILVEIRA, Marcelo Pichioli da. Sobre o art. 600, inciso IV, do Código de Processo Civil: a redação da Lei nº 11.382/2006 e sua (in)constitucionalidade. No prelo da Revista de Direito Público, do Curso de Mestrado da Universidade Estadual de Londrina – Paraná.

 WAMBIER, Luiz Rodrigues. Encontro com o autor – Luiz Rodrigues Wambier: depoimento. [2011]. TV Justiça: Illuminuras. Entrevista concedida a Carolina Sette. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=T2OKaH3evYI&gt;. Acesso em: 25 jun. 2013.

Fonte: Jus Navigandi

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