Publicidade e fundamentação são dois lados da mesma moeda
Conjur, por José Levi Mello do Amaral JúniorO inciso IX do artigo 93 da Constituição de 1988 dispõe que “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação”.
Estabelece-se, aqui, uma distinção: decisões jurisdicionais são “fundamentadas”, enquanto decisões administrativas, inclusive de tribunais, são “motivadas” (expressão constante do inciso X do mesmo artigo 93). A distinção talvez pareça perfunctória a alguém, mas tendo sido estabelecida pela Constituição, convém seja observada pelo intérprete.
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Processo Civil Moderno, volumes 1, 2, 3 e 4
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O dispositivo agita dois elementos normativos da maior importância: (1) a publicidade obrigatória de todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário; e (2) o dever de fundamentar toda decisão tomada pelos órgãos do Poder Judiciários. Em regra, julgamentos secretos e decisões não fundamentadas são nulos.
Por outro lado, a publicidade admite exceção em favor da reserva. A exceção originariamente prevista pela Constituição era em favor do “interesse público”, mas, ainda assim, apenas limitando “a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes”.
A Emenda Constitucional 45, de 2004, restringiu a exceção, especificando melhor os seus termos: a lei poderá “limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes”, mas, apenas e tão-somente, “em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação.”
A publicidade ampla e irrestrita como regra é inerente a todo e qualquer julgamento, inclusive no Supremo Tribunal Federal. O Direito comparado conhece diversos exemplos de Supremas Cortes e de Tribunais Constitucionais que julgam reservadamente, de modo a preservar os seus membros, o máximo possível, do clamor popular e outras pressões externas de qualquer espécie.
A Suprema Corte norte-americana, por exemplo, realiza sessões públicas para ouvir e questionar os representantes das poucas causas que ela aceita julgar (a Suprema Corte escolhe os casos que merecem a sua atenção e decisão). Em tais sessões, os Justices nem sequer debatem entre si. Quando muito se limitam a arguir os representantes das partes. No entanto, o julgamento propriamente dito — inclusive os debates entre os Justices — é reservado, com posterior divulgação por escrito da opinião da corte, com ou sem divulgação de opinião vencida.
Também é interessante o depoimento de Gustavo Zagrebelsky, que integrou e presidiu a Corte Constitucional italiana e cujos juízes reúnem-se em dois ambientes do Palazzo della Consulta: na sala de audiência pública e na câmara de conselho. Ele disse:
“Na contígua sala de audiência pública, esses se dispõem ao longo de uma mesa aberta de um lado, uma ferradura, o presidente ao centro e sete juízes à direita e sete juízes à esquerda, em ordem inversa de antiguidade no cargo. A disposição assegura que todos se vejam em volta, quais pessoas viventes e não entidades inertes, como acabariam se pudessem — ao invés — darem de ombros. O semicírculo, do lado aberto da mesa, tem o banco dos advogados e o espaço reservado à imprensa e ao público: em uma palavra: é dirigido ao mundo externo. Em certo sentido, exprime a idéia de abertura, de congraçamento, de troca. A audiência é, para registro, tempo de escutar e de buscar boas razões, onde quer que elas possam se encontrar. (…) Os juízes vêem e são vistos; examinam e — no que deixam transparecer de suas expressões — são examinados.
A seguir, concluída a audiência pública, quando se trata de decidir, os juízes se ‘retiram’. Abre-se então um espaço temporal e uma dimensão espiritual diversos. Neste ‘retirar-se’, cada contato com o exterior é interrompido. Os juízes se encontram a sós com eles mesmos. Aquilo que está fora, o mundo em função do qual se reúnem, continua existindo, mas apenas nas representações de quem está dentro.
O cenário muda segundo um ritual carregado de significado. Outros símbolos. O lado da mesa que na audiência pública estava aberto, agora se fecha, para que seja claro que, a partir deste momento, os juízes contam apenas com as suas próprias forças. (…) As legítimas influências de antes se tornam ilegítimas interferências. O trabalho comum não deve ser perturbado. (…)” (ZAGREBELSKY, Gustavo. Principî e voti. La Corte Costituzionale e la politica, Turim: Einaudi, 2005, p. 11-13)
Os órgãos judicantes brasileiros em geral, e o Supremo Tribunal Federal em particular, praticam alto grau de transparência e abertura. Apenas excepcionalmente há julgamentos reservados, como em casos sobre Direito de Família. Porém, não se pode menosprezar o cuidado de reserva havido em parte dos trabalhos de Supremas Cortes e Tribunais Constitucionais de outros países: decorre de uma preocupação compreensível de resguardar o mais possível a independência da magistratura contra pressões externas.
Quanto à fundamentação, na precisa síntese do ministro Celso de Mello, é ela “pressuposto de legitimidade das decisões judiciais” (HCn. 80892). A consistência da fundamentação é parte importante da legitimação das decisões proferidas pelo Poder Judiciário. Conforme a própria Constituição, decisão judicial destituída de fundamentação é nula. Isso vale para qualquer decisão judicial, não apenas para as finais de mérito.
As decisões judiciais lidam com a vida, com a liberdade e com o patrimônio das pessoas. Portanto, repercutem sobre o que há de mais precioso para a vida individual e social. Logo, devem ser fruto da prudência, do cuidado, do estudo atento e dedicado de cada problema levado a juízo. A fundamentação documenta e explica este exercício tão delicado confiado aos magistrados.
Ademais, as partes interessadas em recorrer contra decisões judiciais precisam conhecer as razões – os fundamentos – que levaram ao desfecho do caso. Sem esta ciência, nem sequer é possível conceber o recurso (ou, mais precisamente, não é possível recurso quanto à questão de fundo, mas apenas e tão-somente quanto à ausência – ou grave carência – de fundamentação).
Ausência ou carência de fundamentação ensejam número considerável de decisões dos tribunais de apelação, dos Tribunais Superiores e, inclusive, do Supremo Tribunal Federal. É razão bastante comum para a concessão de Habeas Corpus para derrubar decretos de prisão temporária ou preventiva. Porém, o problema não pode — e não deve — ser imputado, simplesmente, aos juízos recorridos. Há, nisso, reflexo de problema estrutural maior: número insuficiente de juízes, de varas, de servidores etc.
Enfim, tanto publicidade como fundamentação das decisões judiciais desempenham papéis que são essenciais à transparência do Poder Judiciário. A fundamentação, para que haja possibilidade de controle e de recurso relativamente à decisão. A publicidade, para que se possa conhecer o debate que levou à decisão, inclusive no que se refere aos seus fundamentos. Portanto, publicidade e fundamentação são as duas faces de uma mesma moeda. Complementam-se na busca de algo indispensável em um regime democrático: dar a devida satisfação acerca das decisões do poder público — inclusive em juízo — aos seus destinatários, os cidadãos.
Fonte: Conjur
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