“Apenas uma ínfima parte dos jovens que cometem um crime possui uma trajetória criminosa”, afirmam pesquisadores

Instituto Humanitas Unisinos, por  Natalia Aruguete e Bárbara Schijman

Como Gabriel Kessler (na foto, à esquerda) chegou a estudar a problemática do crime? Lidou com os efeitos da instabilidade do trabalho – não a pobreza e o desemprego de longa duração – sobre o aumento do crime, em especial do juvenil. E identificou a existência de “mobilidades laterais” entre trabalho, escola e crime.

Então, começou a surgir uma nova preocupação: a extensão do medo. Disse-me: “Uma sociedade não é a mesma quando o medo do crime se expande. Assim, cheguei a trabalhar sobre o sentimento de insegurança”, afirma este pesquisador argentino, um dos primeiros a instalar e definir conceitualmente este termo.

Kessler é doutor em Sociologia pela Ecole des Hautes Etudes em Sciences Sociales (EHESS) de Paris, pesquisador do Conicet e professor da UNGS. Entre seus escritos se destacam “La nueva pobreza em la Argentina” (com A. Minujin, 1996), “Sociología del delito amateur” (2004) e “El sentimiento de inseguridad”.

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O caso do uruguaio Denis Merklen (na foto, à direita) é diferente. Chegou a Buenos Aires aos oito anos e viveu em um bairro pobre do partido de La Matanza. Esteve “entre as camadas inferiores, embora distante das mais baixas”, como afirma o atual pesquisador no Institut de Recherche Interdisciplinaire sur les Enjeux Sociaux, em Paris.

Com grande esforço e viagens intermináveis, Merklen se formou na Universidade de Buenos Aires e, posteriormente, fez o doutorado na França, onde estudou com Robert Castel.

Um aspecto destacável é a coerência que manteve entre sua vida pessoal e familiar e sua formação profissional. “Prestamos uma atenção muito especial à condição do pobre”, a partir de um trabalho de campo que procura romper com a sociologia tradicional.

Ambos estudam a conflito social a partir de abordagens complementares, que, no entanto, tocam-se em algum ponto. A partir de um olhar crítico, provocativo, colocam a questão da “redução ao social” e suas derivações, e convidam, por outro lado, a uma relação diferente com seus objetos: uma “sociologia dos problemas públicos” onde o pesquisador faça parte dos dispositivos de enunciação e suas práticas.

Do profundo debate sobre “Morais e sentimentos da questão social” entre Robert CastelGabriel KesslerDenis Merklen e Numa Murard, ocorrido na Casa Argentina de Paris, em março de 2011, surgiu a obra “Individuación, precariedad, inseguridad. Desinstitucionalización del presente?” (Paidós). Nela estão presentes problemáticas-chaves do mundo atual, em especial sobre o modo como evoluiu o conflito social nas últimas décadas.

Após a apresentação do livro, na X Jornada de Sociologia, os pesquisadores Kessler e Merklen conversaram com o jornal Página/12. Na conversa, problematizaram a forte peso de ser indivíduo hoje, advertiram sobre a hiperinflação da ideia de risco como marco de legibilidade da sociedade e colocaram em questão o papel do sociólogo, em particular, “o que fazer com nosso próprio discurso da estrutura social”, pontua Kessler.

A entrevista é de Natalia Aruguete e Bárbara Schijman, publicada pelo jornal Página/12, 02-12-2013. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.

Como você caracterizaria as atuais dinâmicas de individuação?

Denis Merklen: Esta palavra é quase um neologismo, não é assimilável à individualização. Não buscamos entender o que é o que faz com que cada um seja um sujeito singular, mas o que faz com que possamos nos comportar como indivíduos no mundo, conduzir nossas vidas como indivíduos e ter certos espaços de liberdade, independência social e autonomia. Retomamos algumas perguntas já concebidas, há quase vinte anos, por Robert Castel: a forma como, atualmente, nós nos tornamos indivíduos nem sempre tem um valor positivo. Podemos nos tornar indivíduos e isso constituir uma forma de desigualdade social, de peso social. Até algum tempo atrás, a sociologia pensava que alguns – os pobres, os trabalhadores – não conseguiam ser indivíduos, que a condição de indivíduo era das classes altas e médias. A novidade em nossos trabalhos de campo é que a individuação está distribuída em toda a estrutura social. Porém, isso não significa que todos necessariamente se desenvolvam, libertem-se e se expandam. Às vezes, o ser indivíduo no mundo atual pode ser uma carga extremamente pesada.

A respeito desta pesada carga, que efeitos geram nas subjetividades aquilo que você define como “responsabilização” e “atuação”?

Denis Merklen: Na Europa há muitos dispositivos sociais que apontam para produzir a subjetividade do outro, formas de atuar sobre o outro como sujeito. Algo que não é novo, mas que antes estava reservado a sujeitos percebidos como problemáticos e que agora se dirige a todo mundo, às pessoas que não possuem problemas, mas que simplesmente fracassam na vida. O outro ponto é que para poder se guiar como um indivíduo responsável são necessárias certas condições que, às vezes, são da ordem dos recursos que se possui e outras da ordem contextual. Então, converter a exigência de se guiar como um indivíduo responsável e autônomo, universalmente, supõe desconhecer os recursos aos quais cada um dispõe para isso, por um lado, e as abismais diferenças de situação nas quais alguém se encontra, por outro.

Associado ao contexto, também no caso dos riscos haveria diferenças?

Gabriel Kessler: A pergunta é até onde estendemos a ideia de risco. No artigo de Castel se expressa uma posição que também nós, outros autores, compartilhamos: alerta-se a respeito da hiperinflação da ideia de risco como marco de legibilidade da sociedade atual. Por um lado, há uma expansão do risco como grade de legibilidade, o que acarreta novas e constantes demandas aos governos. Eles são interpelados para nos proteger contra novos tipos de riscos, impensados tempos atrás. Cada vez mais se instala a ideia de uma democracia técnica que possa administrar estes riscos. Esta é a discussão entre os teóricos da sociedade de risco (BeckGiddens) e a postura de outros como Castel, que propõe a necessidade de limitar e diferenciar a utilização da ideia de risco.

Em que sentido você acredita que se deve diferenciar?

Gabriel Kessler: Por um lado, sua extensão limitada dilui a ideia de responsabilidade sobre certos coletivos e certas classes. Por outro lado, impõe uma demanda necessariamente insatisfeita, tanto na relação com a insegurança como com respeito a outros temas, a chamada “frustração securitária”. Em relação à insegurança, há um questionamento à ideia de grupos de risco, porque se pode demonstrar correlação, mas não causalidade entre certos atributos e o crime. Ao que se acrescenta a ideia de indicadores “pré-delitivos”, que acarretaria no risco futuro de que se cometam tais fatos, com o potencial estigmatizador que implica. Também se questiona a ideia clássica da criminologia, a de que os crimes na juventude são indicadores de uma trajetória criminosa adulta, uma vez que se demonstrou o contrário: apenas uma ínfima parte daqueles que cometem um crime na juventude possui o risco de contar, mais tarde, com uma “trajetória” no mesmo. Há nisso um questionamento, tanto às políticas mais autoritárias como às mais progressistas, sob a ideia de “jovens em risco”, cuja extensão ilimitada imporia um tipo de política preventiva com marcas autoritárias.

Em que medida a proposta de limitar a ideia de risco se associa à premissa de que “Não surpreende que a insegurança esteja em primeiro plano na preocupação da Argentina e em nível regional”, que você apresenta no livro “Ilegalismos, cidade e política”?

Gabriel Kessler: Não surpreende porque surge, sobretudo na América Latina, uma mudança na experiência social e cultural do crime ligado ao aumento das taxas históricas de cada país. Uma mudança importante que se deu dentro de uma mesma geração ou com uma geração de diferença. Por exemplo, o caso do Uruguai é paradigmático, onde em termos relativos suas taxas são baixas, mas aumentaram em função do que era habitual. Lá existe uma sociedade envelhecida no qual o passado está sempre muito presente. Experimentou uma mudança na relação com o crime. Isso faz com que apareça, quase por antonomásia, como o risco primeiro.

Por quê?

Gabriel Kessler: Porque os riscos não se expressam tanto em cálculos de probabilidades – não alcança em dizer a uma pessoa: “Veja que as probabilidades de sofrer um homicídio são baixas” -, mas se expressam em termos de experiência de incerteza: a percepção dicotômica de que algo pode me ocorrer ou não. A isto se acrescenta que, de algum modo, escolhe-se entre os riscos que mais lhe preocupam, rebelam ou lhe parecem intoleráveis. Uns são mais insuportáveis que outros porque são mediados por uma condenação moral. Enquanto alguns se inscrevem dentro do aceitável, outros se tornam moralmente insuportáveis. E isto explica a razão pela qual reagimos mais, muitas vezes com maior bronca do que medo frente ao crime do que a outros riscos com maiores probabilidades, mas sem a mesma indignação moral. Um tema adicional é a “configuração Cone Sul”, entre as quais está Buenos Aires junto com outras cidades argentinas, Montevidéu e algumas cidades chilenas. Possuem um traço comum: os homicídios são relativamente baixos, mas as taxas de vitimização são altas.

A que se deve essa dissociação?

Gabriel Kessler: Em parte, ao tipo de vida urbana: onde há mais circulação urbana de indivíduos costuma haver mais crimes ocasionais. Eles ressoam de forma constante nas conversas. Esse pano de fundo diário se articula com as notícias dos fatos mais violentos, menos habituais, mas que, por essa mesma razão, são os que mais presença possuem nos meios de comunicação. Assim, a incerteza de que acaso um destes inumeráveis fatos cotidianos tenha um desenlace fatal é uma chave explicativa da alta preocupação atual. Isto se retroalimenta com a imagem de um “crime aleatório”, ou seja, pouco profissional e com escasso controle da violência, o que contribui para o medo desse desenlace. Quando a insegurança se vincula ao “crime organizado”, como acontece em outros países da região, os medos se configuram de maneira diferente do que acontece no Cone Sul.

Em seus escritos, você diz que há uma autonomia relativa entre crime e insegurança. Outros autores, ao contrário, afirmam que a sensação de insegurança não está associada com a taxa de crimes. Mais ainda, em alguns países as estatísticas mostram uma baixa no nível de crimes cometidos e, ao contrário, um aumento do medo do crime.

Gabriel Kessler: Eu sustento que (a autonomia) é relativa. Quando alguém toma uma evolução temporal de uma década ou de uma década e meia em determinados países, enxerga uma reacomodação das percepções. Quando os crimes começam a aumentar, em geral um tempo depois o medo aumenta. Quando o crime baixa – mas a preocupação já está instalada: os meios de comunicação tematizam o assunto, os mercados de segurança estão prósperos, as práticas sociais mudaram -, podemos dizer que aí o sentimento de insegurança, pensado como sentimentos, práticas e representações, autonomiza-se e perdura. Porém, uma vez que o crime baixa e se mantém assim, durante um tempo considerável, como em vários países da Europa, o medo do crime diminui. Em lugares como o Chile, onde o crime começou a baixar, também o medo baixou. Em Bogotá, para além do fato das taxas continuarem sendo muito altas, o crime efetivamente baixou e a percepção também. Há uma maleabilidade das percepções.

Como você analisa as medições neste campo?

Gabriel Kessler: Se eu busco o medo, encontro o medo, razão pela qual as medições mais sofisticadas começam a diferenciar entre o que chamam de um “medo experiencial”, mais ligado às experiências pessoais ou à leitura do contexto do bairro, daquilo que se denomina como um “medo expressivo”, associado a uma crítica social, em muitos casos expressões autoritárias sobre imigrantes, inquietações por mudanças nos setores populares, crítica geracional contra os jovens. Os indicadores atuais – por exemplo, a pesquisa britânica de vitimização que diferencia entre indicadores para medo experiencial e medo mais expressivo – mostram que quando diferenciamos entre indicadores para um e outro medo – os de percepção de probabilidade de um crime, por acaso – não apenas os índices do medo mudam, mas, além disso, os grupos que apareciam como menos temerosos, por exemplo, os jovens varões, começam a mostrar números mais elevados. Dependendo do que se pergunta, encontra-se coisas diferentes.

Como esta noção de risco se vincula com a crescente individuação e a precariedade da qual falam no livro “Individuación, precariedad, inseguridad”?

Denis Merklen: Atualmente, não há maior individuação porque exista maior precariedade ou exposição ao risco. Inclusive, quando se revisa a literatura sociológica do século XX, é indubitável que a individuação foi um efeito imediato e exponencial de uma maior estabilização das condições de vida, de maior segurança social. Se comparado ao que havia ocorrido durante o século XIX, ao se conseguir estabilizar os modos de vida da maioria, tornando-lhes previsíveis e fazendo com que o horizonte temporal se estendesse, houve uma explosão do individualismo, observado muito claramente já nos anos 1950. O que ocorre após esse processo, com as formas de precariedade que conhecemos nos últimos 30 anos, é que se produz um modo de individuação diferente.

Com que traços?

Denis Merklen: Já não está relacionada com a capacidade que um indivíduo tem de poder antecipar e se projetar para o futuro de maneira independente, mas com a dificuldade que os sujeitos possuem em se apoiar em estruturas sociais sólidas, o que os obriga a se repensarem como os únicos atores de suas próprias vidas. Como não posso contar com nenhuma proteção social, não posso mais do que me adequar sozinho. Porém, entre ser socialmente independente e ter que se adequar sozinho, há uma qualidade do tipo de indivíduo que é muito diferente.

Em que se diferencia?

Denis Merklen: No primeiro caso há certa homogeneização com as condições sociais, o que não quer dizer igualdade, mas que alguns riscos se controlam melhor. No outro caso, há uma profunda desigualdade social porque não se é igualmente indivíduo em diferentes contextos. Suponha que dizemos: “as sociedades contemporâneas são sociedades de risco”. Ao dizer isso, nós não deixamos de observar uma situação muito evidente.

Qual?

Denis Merklen: Vamos por uma rua qualquer da cidade, em algum momento da tarde, aqui e em alguma periferia pouco transitada e protegida, é incontestável que a exposição ao risco não é a mesma. Da mesma forma em que não está exposto ao mesmo risco um habitante de classe média em Berlim em relação a um de classe popular no Congo… Então, se todos estão igualmente expostos ao risco, estamos perdendo uma capacidade descritiva formidável, porque sem dúvida as situações são diametralmente diferentes, dependendo da exposição. Há uma obrigação do sociólogo de restituir um elemento que não é perceptível necessariamente para os sujeitos. Que tanto o cidadão em Berlim como outro podem se sentir muito ameaçados, mas não podemos dizer que as duas situações sejam iguais, apesar dos sujeitos se expressarem da mesma maneira.

Gabriel Kessler: Gostaria de destacar as formas paradoxais em que se podem expressar subjetivamente esses maiores riscos e essa maior incerteza, ligada à criminalidade que mencionava há pouco. Em meu artigo, eu comparo os jovens que cometeram crimes nos anos 1970-1980 aos dos anos 1990 a 2002 e após 2006. Na segunda etapa, aparecia algo que naquele momento não vi tão claramente; talvez eu acreditasse que era um aspecto da adolescência. Era essa incerteza e, sobretudo, essa grande precariedade, que podia ser lida à primeira vista como uma ideia de ator hiperestratégico, quando o que havia era uma situação de necessidade que se expressava como uma espécie de lógica instrumental, segundo a qual parecia não haver opção para além da escolhida.

No que se expressava essa falta de opção?

Gabriel Kessler: Eu uso uma frase de uma entrevista que o resume: “Eu precisava de dinheiro. Não tinha trabalho. Sai para roubar”. Ali aparece reduzido ao máximo o campo de ações possíveis, o qual pode ser lido como uma espécie de ator hiperestratégico que está somente pensando em uma lógica dos fins, sem se importar com os meios. Porém, quando o comparo com alguns jovens dez anos depois, em uma sociedade onde se abrem mais oportunidades de trabalho, onde há uma ideia de menor precariedade para além do fato de que realmente os possa ou não incluir, aparecem mais opções e capacidade de agência.

Dez anos depois, puderam optar?

Gabriel Kessler: O crime aparece como uma possibilidade pela qual se pode optar ou não. O paradoxal é que a ideia de incerteza que alguém tenderia a pensar que se vivencia com um estado de dúvida, do ponto de vista dos atores, às vezes, é expresso como se o caminho que se escolhe seja o único possível. Então, isto nos coloca diante de uma questão bastante debatida no livro: essa relação entre o que alguém (como pesquisador) explica e o que os atores dizem de si mesmos.

O pesquisador pode evitar dizer mais do que os atores dizem? Como fazer para não enviesar o relato dos atores, a partir de sua interpretação?

Denis Merklen: Quando Kessler constrói sua narração de três momentos de um personagem social equivalente e os compara, produz um modo de compreensão do mundo que não é acessível a nenhum desses atores. Como sociólogo, ele está em condições de criar um dispositivo de observação que é próprio de seu trabalho. Nisso há um momento de “criatividade” na construção do dispositivo de pesquisa. Então, sem a necessidade de dizer: “Esta pessoa está errada ao pensar o que pensa sobre sua própria vida, sua própria história e sobre o mundo”, os sociólogos tem a obrigação de construir um mecanismo de acesso à realidade, de conhecimento, que permita observar algo que não era observável antes. E que não é diretamente acessível para os próprios atores. Acredito que nisso há uma resposta possível para este dilema moral do sociólogo, ao passo que não resolve todas as perguntas possíveis.

Gabriel Kessler: Duas observações. Por um lado, nas ciências sociais, em especial a partir da sociologia pragmática, existe um movimento, há vários anos, de questionar o que chamaram a redução ao social, no sentido de impor uma série de argumentos e de chaves explicativas relativamente limitadas – a crítica é, sobretudo, a Bourdieu – para explicar diferentes questões. Como disse Latour, impor uma meta-narrativa que substitui a própria narrativa dos atores. Nestes temas, parece-me que essa pergunta tem também uma relevância política particular. Refiro-me a que as explicações sociais, aquelas com as quais concordo e sobre as quais trabalho, permitem contrariar os discursos mais punitivos quando há o grande aumento do crime nos anos 1990. Demostramos, na Argentina como no resto da região, a relação entre aumento da desigualdade, desemprego e crime. Porém, é necessário incorporar outras variáveis à experiência urbana de um crime, às emoções ligadas aos atos e aos próprios atores. Poder diferenciar entre nossas interpretações e as dos atores, que em muitos casos, como disse Boltanski, não aceitam submeter sua história a um relato de dominação.

Denis Merklen: No início de sua carreira, Bourdieu havia dito que o principal problema do sociólogo é que seu objeto fala. Ele era perfeitamente consciente disso e tomou uma decisão radical. Sabia que se expunha a que o dissessem: “Você não tem razão”. Em uma das últimas cenas do filme “La sociología es um deporte de combate”, Bourdieu se expõe frente aos jovens da periferia de Paris. Um dos rapazes lhe diz: “Você tem Deus em seu sobrenome, mas você não é Deus” (Nota da R.: DieuDeus em francês). “Não é ninguém para vir nos explicar o que acontece conosco”. Nesse momento, Bourdieu era um professor do Collège de France, uma pessoa conhecida na França por todo mundo. Quando Bourdieu sai da sala, diz: “Pobres rapazes, acreditam que entendem o que está ocorrendo com eles, mas não entendem nada”.

Em relação a esta discussão sobre o “olhar” do sociólogo, como não cair no miserabilismo?

Denis Merklen: A repreensão de miserabilismo é a sociologia de Bourdieu. Trata-se da tomada de consciência que os mecanismos de dominação possuem em uma sociedade, que fazem do dominado um sujeito que, inclusive, não pode falar em nome próprio. Bourdieu dizia que as classes populares não podem falar em nome próprio, apenas podem ser faladas por outros. O acento posto na observação pode invalidar completamente o fato de que esses dominados têm uma voz, uma iniciativa, uma visão de mundo, erram, fazem coisas boas e outras ruins. Há uma espécie de condescendência que desqualifica porque não é mais do que a produção de um dominado.

Como escapar disso?

Denis Merklen: É algo muito difícil para nós, que prestamos uma atenção muito especial à condição do pobre. Penso que o principal cuidado que temos que ter é o de pensar que todos os outros membros da sociedade são nossos concidadãos. Os pobres, a classe média e os ricos. E que do mesmo modo que criticamos, sem rodeios e com entusiasmo, as condutas e os modos de ver dos poderosos, dos políticos, dos jornalistas, também devemos ter uma atitude crítica – o que não quer dizer desconhecer a racionalidade do outro – da forma como estão em uma posição de desvantagem: pobres, submissos, explorados e demais. O reconhecimento da situação e da condição não obriga a ter um ponto de vista condescendente, nem desqualificador com o outro.

Gabriel Kessler: Uma das formas de evitar o risco do miserabilismo é não pensar determinados fenômenos como exclusivos dos setores populares, mas ter um olhar que considere os diferentes grupos e as relações entre os grupos ou classes sociais. Os ilegalismos que estudamos no livro, por exemplo: poderia se dizer que a cada classe e faixa etária correspondem diferentes tipos de ilegalismos. Quando alguém vai a uma concentração urbana se encontra com um terreno heterogêneo de setores médios, médios baixos, médios altos. No entanto, costuma-se visualizar como um território polarizado entre classes altas, em urbanizações privadas, e setores marginalizados; nada mais distante da realidade. O efeito de uma construção de conhecimento, com uma preocupação legítima pela urgência social nos anos passados, tendeu a ter uma visão enviesada sobre certos territórios e faixas da população. Aí há um problema. De fato, hoje nos perguntamos do que falamos quando falamos de setores populares e também como defini-los. Por último, acredito que há um questionamento mais macro sobre o que fazer com nosso próprio discurso da estrutura social. A “sociologia dos problemas públicos” nos diz: “Vocês – tão especialistas – são parte da conformação dos problemas públicos. Vocês não são a voz que diz, de fora, “isto é assim ou assado”. Somos parte desses dispositivos de enunciação e de práticas que contribuem para configurar esse problema.

Instituto Humanitas Unisinos, por  Natalia Aruguete e Bárbara Schijman

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