STF relativiza Constituição ao exagerar na modulação de efeitos de suas decisões

“A obediência à Constituição se tornou relativa e com data marcada. […]. A decisão relativiza a obediência à Constituição, reforçando a cultura brasileira de leis que pegam e não pegam, enfraquece o primado da lei no país. É tipicamente um caso de desmoralização institucional. Para não causar transtorno, o que é ilegal passa a ser legal, por um tempo, mas tem que ser legal daí em diante. […]. É chocante ver a Corte Suprema dizer que uma lei é inconstitucional, mas tudo bem desobedecer à Carta Magna, porque muitas leis são igualmente inconstitucionais, e que só daqui para a frente nova desobediência não será tolerada. É como aqueles pais tolerantes, diante do filho reincidente, que dizem: ‘desta vez, passa, mas daqui para a frente não vamos mais tolerar esse comportamento’. E toleram, porque o reincidente, reincidirá. […]. É o fato consumado que permite obras em desrespeito evidente da legislação ambiental e da própria Constituição sejam licenciadas. É a lei que não pega que permite que a corrupção se alastre, o crime compense, a governança se enfraqueça. A desmoralização decorrente das instituições não ameaça apenas o meio ambiente, o patrimônio púbico e a segurança coletiva. Põe em risco o próprio estado de direito. As leis são substituídas pelas urgências pragmáticas e pela conveniência. Não é boa jurisprudência”. É o que afirma Sérgio Abranches, sociólogo e cientista político, em artigo publicado no blog Ecopolítica.

A seguir, segue a íntegra do artigo:

O Supremo Tribunal Federal voltou atrás na decisão que considerava inconstitucional a medida provisória que criou o ICMBIO. Pelo menos 560 outras MPs padeciam da mesma grave falha legal: não haviam passado por uma Comissão Mista do Congresso, como manda a Constituição. Por isso, o STF decidiu relativizar a Constituição.

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O Advogado Geral da União levantou questão de ordem sobre a decisão que considerou procedente a Ação de Inconstitucionalidade da lei que criou o Instituto Chico Mendes, argumentando que a decisão do STF na prática corresponderia a considerar inconstitucionais todas as MPs que haviam desobedecido à Constituição. Seriam “centenas” segundo ele. Matéria de Carolina Brígido para O Globo, diz que são 560 medidas provisórias que seriam consideradas inconstitucionais. Passando o pente fino podem ser até mais. A ministra Carmen Lúcia lembrou, por exemplo, durante o julgamento que tomou a decisão juridicamente correta, dos “contrabandos” recorrentes: matérias estranhas ao objeto da medida provisória, inseridas à sorrelfa e ilegalmente. A ministra não disse porque esse hábito. É porque essas matérias, isoladamente, não seriam aprovadas ou causariam justificada contestação. Há estudos de juristas e politólogos mostrando que a maioria absoluta das MPs não poderia ter passado da Comissão de Constituição e Justiça, por não atenderem aos preceitos constitucionais para esse instrumento que deveria ser excepcional e se tornou a regra.

Diante do argumento sobre o transtorno de rever tantas medidas provisórias, os ministros decidiram que só a partir de ontem, 5a feira, dia 8 de março de 2012, a regra constitucional deverá ser obedecida. Prevaleceu o fato consumado, por pragmatismo, em nome de suposta “segurança jurídica”. A obediência à Constituição se tornou relativa e com data marcada. Uma coisa é marcar data e vigência de lei para obedecer aos princípios da não retroatividade e da anualidade, por exemplo. Outra é considerar legal o ilegal por conveniência e marcar encontro futuro entre os Poderes da República e a constitucionalidade.

Comentei na CBN, ontem, que a MP da reforma que criou o ICMBIO era substantivamente ruim. O STF aduziu que era inconstitucional. Portanto nasceu sem a necessária qualidade técnica e administrativa e foi aprovada com grave vício de procedimento legislativo, que feriu o princípio constitucional.

Substantivamente, ela deixou em pior condição o IBAMA, de cuja costela saiu o ICMBIO, para cuidar das unidades de conservação. Este, nasceu anêmico e continua cronicamente fraco e sem recursos suficientes para cumprir suas funções. O IBAMA acabou desmoralizado em várias ocasiões. Suas decisões técnicas foram muitas vezes atropeladas por pragmáticas decisões políticas. O caso mais escandaloso é o das licenças para a hidrelétrica de Belo Monte. Como o STF havia autorizado a continuidade do funcionamento do ICMBIO e dado ao Congresso dois anos de prazo para fazer uma lei de acordo com as normas constitucionais, não haveria descontinuidade administrativa. Mas o Executivo e o Legislativo teriam que obedecer à Constituição, o que parece óbvio, mas no Brasil não é. Argumentei que seria a oportunidade para a ministra Izabella Teixeira apresentar à presidente Dilma Rousseff uma boa proposta de reforma do Meio Ambiente, dando condições mais apropriadas ao IBAMA e ao ICMBIO e mais musculatura e centralidade ao próprio ministério. O comentário está aqui.

O recuo do STF, um “jeitinho”, que já havia sido denunciado pelo ministro Joaquim Barbosa em outra ocasião de revisão de decisão já tomada, transcende a questão do ICMBIO e do Meio Ambiente. A decisão relativiza a obediência à Constituição, reforçando a cultura brasileira de leis que pegam e não pegam, enfraquece o primado da lei no país. É tipicamente um caso de desmoralização institucional. Para não causar transtorno, o que é ilegal passa a ser legal, por um tempo, mas tem que ser legal daí em diante. É kafkiano, sem a criatividade do mestre do absurdo.

Esses despropósitos vão emaranhando o Brasil em uma teia de transgressões consentidas, de leis validadas pela metade, de fatos consumados que se sobrepõem ao primado da lei. No caso, ao primado da Constituição. E os agentes dessa coalizão pela relativização do respeito à Constituição são o Advogado Geral da União e os ministros do Supremo Tribunal Federal. Os transgressores originais da Constituição são os Poderes Legislativo, que descumpriu procedimentos constitucionais, e Executivo que promulgou lei inconstitucional.

É grave. Para o STF não poderia haver forma de ajeitar as coisas diante de uma inconstitucionalidade flagrante. Ou o ato é inconstitucional, ou não é; ou é ilegal, ou não é. É chocante ver a Corte Suprema dizer que uma lei é inconstitucional, mas tudo bem desobedecer à Carta Magna, porque muitas leis são igualmente inconstitucionais, e que só daqui para a frente nova desobediência não será tolerada. É como aqueles pais tolerantes, diante do filho reincidente, que dizem: “desta vez, passa, mas daqui para a frente não vamos mais tolerar esse comportamento”. E toleram, porque o reincidente, reincidirá.

É essa cultura do “desta vez passa”, da multa que não é cobrada, da pena que não é cumprida, que permite que caçadores, desmatadores, palmiteiros, mineradores, invadam as unidades de conservação e depredem seu patrimônio natural, destruam sua biodiversidade. O ICMBIO sem meios, pouco pode fazer. É essa relatividade da lei que alimenta os desmatadores que estão devastando a Amazônia, o Cerrado e atacam o que resta de Mata Atlântica. É o fato consumado que permite obras em desrespeito evidente da legislação ambiental e da própria Constituição sejam licenciadas. É a lei que não pega que permite que a corrupção se alastre, o crime compense, a governança se enfraqueça.

A desmoralização decorrente das instituições não ameaça apenas o meio ambiente, o patrimônio púbico e a segurança coletiva. Põe em risco o próprio estado de direito. As leis são substituídas pelas urgências pragmáticas e pela conveniência. Não é boa jurisprudência.

Fonte: blog Ecopolítica.

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