“Showgamentos”, por Túlio Vianna
Em artigo publicado no site Estadão, Túlio Vianna, professor da faculdade de direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), comenta sobre o processo de espetacularização do Poder Judiciário brasileiro, evidente com as transmissões do tribunal do júri.
Eis o artigo na íntegra:
O processo de espetacularização do Poder Judiciário brasileiro tornou-se evidente com a transmissão ao vivo do júri do caso Mércia Nakashima. A sobriedade e a temperança que deveriam estar presentes em todo julgamento vêm sendo abandonadas para dar espaço a uma esportização da Justiça, na qual há um time para o qual se deve torcer – quase sempre a acusação – e outro que se deve odiar, a defesa.
O interacionismo simbólico já demonstrou que seres humanos agem de formas diferentes conforme as interações sociais a que estão submetidos no momento. A performance de um time de futebol jogando em casa é diferente de quando joga no campo do adversário. As pessoas também se comportam de maneiras diferentes quando almoçam sozinhas, com a família, com os amigos, com o chefe ou em um encontro a dois. Em suma: assumem papéis diferentes conforme quem os esteja observando. De todos os olhares que modificam o comporatamento humano, o da câmera talvez seja o mais significativo. A experiência de estar sendo observado por um número indefinido de pessoas que poderão rever aquelas imagens variadas vezes torna quem está sendo filmado bastante vulnerável ao julgo alheio.
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Nos julgamentos pelo tribunal do júri, cabe a sete jurados que não precisam ter qualquer formação jurídica, decidirem se o acusado é culpado ou inocente. A maioria deles não tem qualquer experiência em participações na TV e sabe que em regra o público deseja que se condene o réu. Sabe também que, caso absolva, sua imagem poderá estar no dia seguinte no Facebook em algum tipo de protesto contra a impunidade. E, como ser humano que é, teme sair mal na foto.
Também o réu e as testemunhas em regra não têm experiência na TV ou mesmo em falar em público. E são constrangidos a narrarem os fatos na frente das câmeras. O acusado passa então a tentar convencer da sua inocência não só os sete jurados, mas um número indefinido de telespectadores que decidem descompromissadamente em suas casas se ele é culpado ou inocente. As testemunhas, por outro lado, são colocadas no dilema de desagradar o público (ia escrevendo torcedores, mas refreei-me a tempo) com uma versão benéfica ao réu ou sustentar uma versão favorável à acusação, mesmo sabendo que o réu poderá assistir posteriormente aquelas imagens infinitas vezes para alimentar seu desejo de vingança.
Finalmente, o juiz, o promotor e os advogados também estão sujeitos às pressões do olhar do público e passam a representar papéis como o do “juiz austero”, o do “promotor implacável” e o do “advogado combativo”, com a intenção de se promoverem perante a opinião pública. A racionalidade do Direito, que deveria pautar o julgamento para condenar o culpado ou absolver o inocente, cede espaço à teatralização cujo objetivo primordial é “dar satisfação à sociedade”.
As transmissões ao vivo dos julgamentos do STF pela internet já deram provas de como a opinião pública interfere no comportamento dos julgadores. As decisões do STF, porém, afetam direta ou indiretamente a vida de todos os cidadãos brasileiros e há um inequívoco interesse público em acompanhá-las, o que justifica a necessidade de suas transmissões. Além do mais, espera-se que os onze ministros do STF tenham suficiente maturidade para saber se distanciar da vontade popular e decidir conforme o Direito e a Constituição, até por terem formação intelectual para isso, além das demais garantias inerentes ao cargo.
Os julgamentos do tribunal do júri sempre foram públicos e qualquer pessoa interessada sempre pôde assisti-los bastando para isso dirigir-se ao fórum, o que é muito diferente de se transmiti-lo ao vivo pela internet para milhares de curiosos. Quem dedica seu tempo a ir ao fórum assistir a um júri tem algum interesse real nele, seja por parentesco ou amizade com algum dos envolvidos ou qualquer outro vínculo com o caso. Quem assiste a um júri pela internet, na maioria dos casos, é um mero curioso que acompanhou o caso pela imprensa e formou uma opinião apressada, sem nunca ter avaliado diretamente as provas. E é esta opinião apressada, mas tão convicta quanto o amor devotado a seu time de futebol que, em última análise, irá influenciar a decisão dos jurados a condenar o réu.
Se o interesse da decisão do caso é limitado ao acusado, à vítima e a seus familiares não há porque submetê-los aos olhares de curiosos sem qualquer compromisso com uma decisão conforme a lei.
Julgamentos não são jogos a serem transmitidos para entreter os telespectadores. Nem um novo tipo de espetáculo, que poderíamos chamar de “showgamento”, que combina o melhor do esporte e do teatro em um único show ao vivo cujo final é decidido pelos aplausos de quem assiste. A espetacularização do Direito só afasta os jurados de decisões racionais próprias de um julgamento ponderado e os conduz a decisões emocionais que criam finais felizes para os espectadores, mas nem sempre justos para o réu.
Fonte: Estadão, por Túlio Vianna
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